Para quem nunca ouviu falar deste livro, lançado recentemente, vai a sinopse:
Grito de guerra da mãe-tigre é a história polêmica da sino-americana Amy Chua, renomada professora de Direito da Universidade de Yale, e por se opor drasticamente à indulgência dos pais ocidentais, tomou a decisão de criar as suas filhas, Sophie e Lulu, à moda chinesa.Como as mães-tigres veem a infância como um período de treinamento, Sophia e Lulu tiveram aulas de mandarim, exercícios de rapidez de raciocínio em matemática e duas ou três horas diárias de estudo de seus instrumentos musicais (sem folga nas férias, e com sessões duplas nos fins de semana). Os resultados são indiscutíveis: ambas são alunas excepcionais; Lulu ganhou um prêmio estadual para prodígios do violino e Sophia se apresentou no Carnegie Hall aos 14 anos. Entretanto, o preço dessas conquistas é muito alto, e os confrontos generalizados com a rebelde Lulu põem a prova os princípios e os métodos dessa mãe-tigre.
G. me escreveu há alguns meses perguntando "Já ouviu falar deste livro?" e mandou um link com uma reportagem sobre a polêmica que estava causando nos EUA. Na verdade eu já havia ouvido falar, sim. Tinha até lido alguns trechos, ainda em 2010. Mas, honestamente, na época achei que nem fosse uma coisa séria.
O fato é que na ultra-competitiva sociedade americana, onde os orientais estão já há vários anos assumindo a ponta em todos os rankings acadêmicos, o livro está sendo levado muito a sério.
O que me choca profundamente.
Porque não encontro outra forma de colocar: o livro é chocante. Na pior acepção do termo. Se eu fosse ditadora do mundo (esse meu projeto tão acalentado...), essa mulher estaria presa por maus-tratos a menores. O que ela fez/faz com as filhas é ultrajante, revoltante, e leva um tijolo na testa quem vier me falar de relativismo cultural.
Se não vejamos alguns exemplos ilustrativos do modo de ação da tal mãe-tigre: a mãe determina que uma das filhas vai estudar piano e a outra, piano e violino. Quando a mais nova não consegue tocar certa peça ao piano, a mãe a obriga a estudar noite adentro na véspera da aula, fica do lado dela no banco do piano certificando-se de que ela não vai se levantar nem para beber água nem para ir ao banheiro (não estou inventando, nem exagerando: está tudo publicado!). Isso depois de a menina, que na época tinha 6-7 anos, já ter rasgado a partitura em pedacinhos, de tanta raiva (a mãe colou com fita adesiva).
A filha mais velha, a tal que virou concertista de piano, confessa ao pai, meio constrangida, que aquela marca na madeira do piano realmente é de dente, que ela algumas vezes mordeu o piano de tanta raiva por ter de estudar infindáveis horas por dia.
São meninas que nunca dormiram na casa de amigas. Aliás, não há menção a amigas ou amigos at all. Namorados muito menos - e quando o livro termina elas têm 16 e 14 anos, idade em que, como se sabe, meninas nem pensam nesse assunto. Nada é admitido pela mãe-tigre se não trouxer um benefício acadêmico claro e palpável. Esportes, por exemplo, são vetados. Apenas no finalzinho do livro a filha mais nova se rebela, larga o violino e vai jogar tênis.
A mãe é tão doente que, às páginas tantas, compra uma cadela, de uma raça que agora não me lembro. (O simples ato representa uma concessão inimaginável dela às filhas.) Para sua própria surpresa, ela se encanta com o bichinho. Ato contínuo, começa a fazer mil pesquisas sobre aquela raça, e a praticar exercícios -- obsessivamente, como de praxe -- para que a sua cadela esteja entre o Top 5 dos espécimes mais inteligentes da raça!
Por trás de tudo, está uma filosofia segundo a qual "as coisas só começam a ser divertidas quando se é muito bom nelas". Ou seja, ninguém vai gostar de tocar piano a menos que seja um exímio pianista. Ninguém vai gostar de estudar se não for o melhor aluno da turma. E por aí vai.
E, claro, não poderia faltar o elemento constrangedor. A cada pirraça das meninas, vem o inevitável comentário "Você é uma vergonha para esta família!". Meu Deus!
Mas, uma vez Pollyanna, sempre Pollyanna. É possível sim extrair algo de bom dessa loucura toda. O que eu consegui ver de positivo foi a crítica ao estímulo excessivamente positivo de qualquer coisa que as crianças façam. Essa cultura do overpraising pelo qual tudo que seu filho faz, qualquer desenho rabiscado é "lindo", qualquer escultura tosca de massinha é "incrível", qualquer música que ele cante, por mais desafinado que seja, é "bravo!". Educar dá muito trabalho, a gente sabe. Os pais precisam mesmo é saber do que os filhos são capazes (sem expectativas irreais, como as dessa louca), acompanhar o que eles estão desenvolvendo, a tal ponto que seja possível identificar quando eles realmente estão fazendo um desenho meio nas coxas, só por obrigação, sem o capricho que a tarefa exige. E aí, sim, cobrar - por que não? Não ter medo de dizer "Não sei não, filho, acho que você consegue fazer melhor, vamos tentar de novo". Isso não traumatiza ninguém, muito pelo contrário, mostra quanta fé a gente deposita nesses pirralhos.
Enfim, o livro. Apesar de muito bem escrito, bem traduzido, e fácil de ler, não consigo recomendá-lo a ninguém que não tenha uma curiosidade muito antropológica pelo assunto.