Estive pensando que os primeiros CD players que ofereceram a função "random", pela qual as músicas tocam em ordem aleatória, contribuíram para a mudança radical no paradigma da apreciação musical que se consolidou nos últimos vinte anos.
Essa teoria me veio à mente enquanto ouvia, pela milionésima vez, os discos dos Beatles que passei para MP3 e joguei dentro do celular - fico escutando nas idas e vindas do trabalho para casa, no caminho de/para o almoço, e em qualquer outro deslocamento*. Tenho em casa quase todos os CDs dos Beatles, mas só passei para o celular alguns dos meus favoritos:
Abbey Road,
Rubber Soul,
Revolver e
Help!
Ouvindo esses álbuns, não há como não lamentar a perda da concepção do álbum como obra de arte
per se. A relação entre as músicas, a ordenação, o tempo de intervalo entre uma faixa e a seguinte, tudo isso tem um significado e contribui muito para passar a mensagem do artista para o ouvinte.
Minha relação com os Beatles começou através de minha mãe, beatlemaníaca de primeira hora, que me emprestou suas fitas Basf com as gravações dos LPs. Como esses LPs não estavam nas melhores condições, nas fitas havia alguns pulos e chiados que eu até hoje busco inconscientemente quando escuto os álbuns. No meu aniversário de 12 anos, meus pais me deram um lindo livro para piano, "The Complete Beatles Songbook", com partituras para piano e melodia, uma raridade importada na época, que muito prezo e tenho até hoje, encapado com plástico.
Então escuto a sequência absurdamente arrasadora que é
Help!-The Night Before-You've Got to Hide Your Love Way, e de como esse disco é uma espécie de transição entre os roquinhos tolos e inocentes porém gostosinhos (
You're Gonna Lose That Girl) e uma mensagem mais relevante - musical e extra-musical (
Yesterday), como o álbum faz um arco, por assim dizer, que você só percebe se ouvi-lo do início ao fim, na ordem. Ou
Revolver, disco de radicaliza ainda mais essa transição do grupo ao incorporar tantas outras influências, cuja fantástica faixa de encerramento,
Tomorrow Never Knows, de tão "mind-blowing" aparece no final de um episódio da quinta temporada de
Mad Men, quando o personagem principal, Don Draper, percebe que já não está mais dominando o espírito do seu tempo, que os anos 60 são diferentes demais dos 50, e então sua jovem segunda esposa traz esse disco para casa, recém-lançado, e recomenda expressamente: ouça a última faixa - e é um dos melhores encerramentos de episódio ever, justamente porque é um dos melhores encerramentos de álbum ever. (Mas mesmo adorando
Revolver, ainda não consigo compreender o que uma música tão boba quanto
I'm Only Sleeping faz depois do choque de
Eleanor Rigby, simplesmente não entendo e acho um anticlímax tremendo.) E ainda, em
Abbey Road, e a maestria com que
Golden Slumbers e
Carry That Weight se fundem, e como isso se perde se as faixas forem tocadas fora da sequência.
Mesmo as famosas "mix tapes" tão populares nos anos 80 e 90, nas quais amigos gravavam e davam de presente entre si uma fita K7 com sua seleção preferida de faixas de vários álbuns, não deixavam de ser também um todo mais extenso, uma história com começo, meio e fim.
Como a unidade deixou de ser o álbum e passou a ser a faixa, o "single", todo um
discurso musical mais extenso ficou fragmentado, corroendo nossa capacidade de ouvir e prestar atenção em algo que dure mais de três minutos. Aliás, minha impressão é que hoje em dia ninguém mais escuta música simplesmente por escutar. Escutamos música dirigindo, trabalhando, conversando com os amigos, andando na rua, fazendo ginástica, correndo maratonas, mas ninguém pára a diz: agora vou sentar ali e ouvir um disco. Acabou a apreciação musical, e mesmo num show, se não houver uma grande performance incluída no programa (efeitos visuais, gente voando em cima da plateia, 3-D e sei lá mais o quê), o pessoal não vê graça -- restando o último reduto, o concerto de música clássica, em que não há mais nada além da música em que se prestar atenção.
Em tempos de iPod Shuffle, cujo conceito fundamental é tocar as músicas em ordem aleatória, não quero ser uma espécie de Don Draper nostálgico. Mas não posso esquecer de mencionar o quanto era boa a sensação de comprar um disco novo, depois de muita expectativa, e colocar para tocar enquanto deitava no chão, olhando para o teto, esperando para usufruir dos sons que viriam dos alto-falantes. E isso era o bastante.
*Tenho ouvido também muitos audiolivros, mas este é assunto para outro post.