Comprei este livro movida pelo hype, e não me arrependi. The Help é um romance de estreia que está há uns 2 anos entre os mais vendidos nos EUA, tem mais de três mil resenhas na Amazon, média de mais de 4 estrelas, campeão de clube de leituras, vendido para não sei quantos países. É muito bom. E trata sobre o relacionamento entre patroas brancas, seus filhos e as empregadas negras que os criavam, no sul dos EUA, início dos anos 60.
A narração se alterna entre três personagens: Aibeleen, empregada e babá já mais velha, que está cuidando de sua 17ª criança branca, uma menina de 2 anos; Minny, colega e amiga de Aibeleen, mas que não consegue ficar muito tempo em emprego nenhum porque é desbocada e não leva desaforo para casa (engolir sapo é condição necessária para o emprego); e Skeeter, jovem branca amiga das patroas de Aibeleen e Minny.
O livro se passa em Jackson, Mississippi, entre 1962 e 1964, numa época em que o movimento americano dos direitos civis está em franca ascensão nos EUA, e o livro faz questão de ilustrar o apartheid de fato que ocorria -- um dos pontos principais de conflito é a ideia de que as empregadas negras não podem usar o banheiro social das casas brancas onde trabalham, e precisam de um banheiro específico para elas. Uma das personagens inicia uma cruzada pela construção de banheiros nas garagens para as empregadas. E é sobre esse tema que tudo gira: famílias brancas confiam às empregadas negras o cuidado com os filhos, mas não a guarda da prataria ou um banheiro comum.
Mas o motor da narrativa é o livro, intitulado Help, que Skeeter escreve, reunindo depoimentos de uma dúzia de empregadas sobre como é trabalhar em uma casa de brancos, e que termina publicado anonimamente, causando furor em Jackson. A coletânea é rica em experiências muito distintas, alternando relações de muito afeto e ternura, muito ódio, muita crueldade, e também compaixão. E durante a feitura do livro vão surgindo ótimos insights -- tanto para a mocinha branca que está colhendo os depoimentos como para as próprias mulheres que os estão ali prestando.
Um dos meus trechos favoritos é quando Aibeleen explica a diferença entre o ódio racial dos homens e o das mulheres brancas. Homens, diz ela, espancam outros homens até a morte, incendeiam casas, atiram entre si com pistolas. Mulheres, elas preferem manter as mãos limpas.
They got a shiny little set a tools they use, sharp as witches' fingernails, tidy and laid out neat, like the picks on a dentist tray. They gone take they time with them.E prossegue: primeiro a mulher branca demite a empregada negra. Em seguida, assegura-se de que ninguém na cidade a contrate. Depois, ela fala com o senhorio da casa, para que despeje a família da mulher negra que se tornou sua desafeta. Se tiver um carro e ainda não tiver pago todas as prestações, ele será retomado. Uma multa não paga, e é cadeia. Se tiver uma filha que também trabalhe como doméstica, ela será demitida. E finalmente o marido perderá o emprego. The white lady don't ever forget.
Kathryn Stockett, a autora, que nasceu e cresceu em Jackson, e teve uma empregada negra trabalhando para sua família, se arrisca ao escrever com a voz das empregadas negras. Mas o resultado é convincente, e eu consegui ouvir perfeitamente o sotaque do sul:
Parked in front is a old lumber truck. They's two colored mens inside, one drinking a cup a coffee, the other asleep setting straight up. I go on past, into the kitchen.O livro tem uma pegada comercial muito forte. A ação é contínua, tem sempre um gancho para as situações mais importantes. Que não se espere muita sofisticação literária. Os personagens são bem unidimensionais: há uma super vilã, racista filha-de-uma-égua. Há as três personagens principais, verdadeiras heroínas, boas, honestas e virtuosas, cada uma a seu jeito. E há uma porção de intermediários, espécie de vítimas das circunstâncias, pessoas que não estão ali para questionar o status quo, e por isso acabam mal na fita.
Mas o que me chamou a atenção neste livro é que muitas das situações que estão ali por serem flagrantemente absurdas, recursos literários colocados para chocar, pela imensa carga preconceituosa que carregam, são tão... corriqueiros, no dia a dia no Brasil de 2011.
A começar, claro, pelo nosso ubíquo banheiro de empregada.
Dependências completas, área de serviço, entrada de serviço. Estamos, ainda hoje, construindo moradias com essas "conveniências". E o que é mais revelador: quando não se tem quarto nem banheiro de empregada (como aqui em casa, por exemplo), o desconforto maior parece vir das próprias empregadas e faxineiras, que se sentem constrangidas por terem de usar o mesmo banheiro, por terem de guardar seus pertences nos quartos da dita área social da casa.
Hoje em dia, parece, não pega mais bem falar-se em "empregada" ou "doméstica". É um tal de "ajudante", "assistente", "colaboradora", não sei mais o quê. Como se dar o nome fosse vergonha, mas fazer usar um banheiro em que a água do chuveiro cai em cima do vaso sanitário, porque é um cubículo, não fosse absolutamente constrangedor.
No Mississippi dos anos 60 grandes casas da classe média alta eram construídas sem área de empregada. No livro, nenhuma das empregadas mora na casa da patroa. Todas têm suas casas, seus telefones. Minny tem até um carro. Todas sabem ler.
Aqui no Brasil, as patroas quando confabulam entre si costumam se referir às empregadas como "elas" ("Sua empregada vai embora e nem te avisou com antecedência? Ah, 'elas' sempre fazem isso!"). Aqui no Brasil, muita gente acaba se tornando dependente de uma empregada que durma, que abdique de sua própria família para tomar conta da família que lhe paga.
E não digo isso com nenhuma superioridade moral que me exima das práticas que critico. Eu mesma fui criada desde os 5 meses de idade por uma empregada, que até hoje trabalha na casa da minha mãe e me ajuda sobremaneira com meus filhos. Na hora do aperto, é a ela que eu recorro, porque no mais das vezes a minha própria mãe não dá conta de ficar muito tempo sozinha com as crianças. É a ela que eu recorro quando preciso fazer uma comida - ou preciso que façam para mim. Ela é que foi comigo na festa de Dia das Mães da creche de Mathilde. Porque, por uma série de motivos, ela nunca criou uma família própria, nunca teve uma casa, um marido e filhos. Ela estuda, porque gosta, mas nunca se formou em nada, e dificilmente isso vai acontecer. Que tipo de dívida temos nós, as crianças criadas por babás e empregadas, para com essas mulheres que nos ensinaram tudo e mais um pouco?
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The Help vai virar filme, estreia em agosto nos EUA. As fotos acima são do filme. O trailer me parece o de um filme leve, quase uma comédia romântica. Espero que não.
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Sobre a edição brasileira:
The Help saiu no Brasil em fins de 2010 pela Bertrand Brasil, com o título A Resposta. Terminei de ler o livro (a edição americana) e não fiquei fã deste título brasileiro. Está certo que é uma tradução difícil. "Help" tem essa acepção "hired labor, domestic servant", e a expressão era muito usada na época e local descritos no livro. O site do livro criado pela Bertrand propõe uma pergunta para a tal resposta: "Por que as crianças brancas gostavam mais de suas babás negras do que de suas mães?". Ok, é uma questão abordada no livro, e é pertinente, visto que há sim um sentimento tão forte (vide o que escrevi acima), embora eu não enxergue como uma competição entre mães e babás. Mas reduzir o livro à relação crianças e babás e diminuí-lo demais. The Help é mais do que isso, é um livro sobre relações de classe, solidariedade e compaixão. Também não gostei da capa brasileira, confusa. Fiquei curiosa para saber como a tradução se virou com tanto regionalismo na voz das empregadas, mas ainda não li para saber.
Recentemente foi divulgado que a autora vem ao Rio em setembro para a Bienal. Tomara que, com esse impulso, o livro decole. Eu estarei lá para garantir o meu autógrafo.
Um comentário:
Depois me conta se gostou!
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