9.3.08

Heranças literárias

Nesse tipo de herança eu acredito

A matéria de capa do Prosa & Verso (suplemento literário d'O Globo) de ontem foi um desperdício de pauta. O assunto era ótimo: os herdeiros de grandes escritores brasileiros e como eles gerem as obras pelas quais são responsáveis. Mas a reportagem de Miguel Conde e Rachel Bertol (disponível para assinantes) deixou muito a desejar. Eles pegaram depoimentos de herdeiros de Jorge Amado, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Cecília Meireles, Monteiro Lobato, Nelson Rodrigues, Manuel Bandeira, Lucio Cardoso e Vinicius de Moraes. E pronto, acabou a matéria. Os depoimentos eram bem curtos (um box para cada um), só era ouvido um dos herdeiros, ou o representante deles, e principalmente, não havia nenhum debate sobre o assunto.
O abre da matéria falava sobre a decisão das filhas de Guimarães Rosa de não entrar mais na justiça pedindo o recolhimento do livro Sinfonia Minas Gerais, de Alaor Barbosa (que conheceu Rosa), publicado pela miúda LGE. (Este livro sim, foi assunto de uma grande e boa matéria do P&V algum tempo atrás. Não comprei, mas fiquei com vontade.) Não havia a opinião de Barbosa ou da LGE. Mas no resto da matéria, faltou abordar as dificuldades colocadas por alguns herdeiros para a circulação de obras artísticas. Onde estavam os depoimentos de todos aqueles que tiveram seus projetos abortados por idiossincrasias de pessoas que por vezes nem leram a obra sobre a qual decidem?
Claro, nem todo herdeiro é biruta, e nem todo mundo que se propõe a fazer um projeto, uma "homenagem", uma citação, até uma biografia, é gente com noção. Extste, é claro, quem queira mesmo se aproveitar do nome alheio. Tem lá um depoimento da agente literária Lucia Riff falando isso: "Tem muita gente que reclama dos herdeiros mas faz pedidos sem nenhum discernimento, com textos errados." Verdade. Tem também aqueles que fazem um projeto inteiro, conseguem patrocínio, marcam estréia, ensaiam etc., e uma semana antes da estréia resolve pedir autorização dos herdeiros -- e ainda ficam putos se e a resposta não for positiva e rápida. Por outro lado, tem gente que fica anos -- anos! -- aguardando uma decisão de herdeiros para incluir um poema ou trecho de prosa em um livro. E tem herdeiro que cobra 15 mil por uma citação numa epígrafe, num livro com tiragem de mil exemplares, e ninguém pode fazer nada, ele tem direito. 15 mil dólares, bem entendido.
É um assunto bem espinhoso, e tenho quase certeza de que ele vai discordar de tudo que escrevo aqui. Paciência. Eu acho excessiva a proteção que dão aos herdeiros. Acho que herdeiros não podem agir sem critério, como bem lhes der na veneta. Tem que ter limite. Acho errada essa noção de propriedade intelectual para quem não criou a obra. E não me parece válida a comparação "se meu avô tivesse uma fazenda ninguém ia contestar meu direito a ela, eternamente". Não comparo obras artísticas com bens materias, e é por isso mesmo que existe o conceito de Domínio Público. Ora, uma fazenda não entra em domínio público. Uma jóia também não. Nem uma empresa. Porque uma fazenda, uma jóia ou uma empresa não fazem parte do corpo de uma cultura. E porque privar as pessoas de determinada obra artística, vetando-lhe o acesso, é crime. No meu mundo ideal, é claro.
Acho também excessivo o prazo de 70 anos após a morte do autor para que a obra caia em domínio público. É muito tempo, e dá margem a distorções. Vejam por exemplo o Dorival Caymmi. Tem noventa e tantos, não morreu ainda, se não me engano já tem bisnetos. 70 anos depois que ele morrer é possível que os bisnetos desses bisnetos ainda estejam não só recebendo royalties mas também podendo vetar a utilização da obra do baiano.
Há algum tempo, eu lembro de uma polêmica envolvendo os direitos das músicas de um dos maiores compositores da nossa música. Era uma questão de músicas inéditas, que um grupo de músicos queria gravar, mas o herdeiro (que, acho, não chegou nem mesmo a conhecer o compositor em questão) queria ouvir o resultado antes de autorizar. O que muito enfureceu os músicos que haviam gravado as peças, porque eram pessoas com décadas de dedicação àquele tipo de música. "Os verdadeiros herdeiros dele somos nós", eu lembro de ter ouvido um dos músicos falar. Arrogâncias e bravatas à parte, dá o que pensar. Quem são os herdeiros de um artista? Aqueles que são legalmente respaldados, ou aqueles que se dedicam à continuação da obra?
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4 comentários:

Anunciação disse...

O Lord pensa tudo isso ao contrário?Vixe!Mas achei tão lúcido,tão equilibrado o seu pensamento sobre o assunto!

Anônimo disse...

também gostei do comentário sobre a diferença entre bem cultural e bem material! será que tem alguém pensando sobre isso no MinC? o Gil é tão afeito a esse debate, como fazer pra mudar? quem decide, é via Legislação mesmo? que raiva disso... Surya

Anônimo disse...

Ótimo post, Anna!
O Ministério da Cultura vem fazendo um debate bem interessante sobre as (muitas!) questões relativas às mudanças que os novos tempos impõem ao direito autoral. Se não me engano, na página deles tem um link para o assunto. Respondendo à pergunta da Surya, as mudanças referentes à questão da transmissão dos direitos aos herdeiros são legislativas, sim. E a coisa é bem complicada. O direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de obras intelectuais transmissível aos herdeiros foi estabelecido pela Constituição Federal e é direito fundamental. Isso significa que é direito que não pode ser modificado ou abolido, é cláusula pétrea. Agora, o tempo necessário para que a obra caia em domínio público (70 anos é mesmo um absurdo!) pode ser alterado por lei comum. Atenção, interessados, encaminhem a idéia para os Deputados ou Senadores em quem vocês votaram (as páginas da Câmara e do Senado trazem o endereço eletrônico de todos eles)! Quem sabe algum compra essa briga...
Um abraço,
Cláudia

Isabella Kantek disse...

Anna, que post ótimo! Você acabou escrevendo o artigo que o jornal não escreveu. =)
Abraços, sua pequena é linda.