28.2.11

A incrível viagem de Shackleton, de Alfred Lansing


A graça de um bom livro de não-ficção é que, quando ele é mesmo bom, você se agarra à história como se pudesse houver alguma surpresa no desfecho - quando na verdade você já sabe perfeitamente bem o que vai acontecer, afinal a história é real e conhecida.

Grandes relatos e reportagens sobre eventos extraordinários são um dos meus gêneros favoritos de leitura. Enquanto leio, fico obcecada pelo assunto, falando a respeito com todo mundo, sem parar (Marido sofre...), pesquisando na internet etc. Foi assim com A longa viagem da biblioteca dos reis, da Lilia Schwarcz, sobre a vinda da biblioteca real portuguesa para o Brasil em 1808/9, dando origem ao que hoje é a Biblioteca Nacional. Foi assim com os meus livros favoritos sobre a Segunda Guerra, Stalingrado do Anthony Beevor, e Cinco dias em Londres, do John Lukacs. Foi assim com No coração do mar, de Nathaniel Philbrick, a história real que deu origem a Moby Dick (sobre um baleeiro atacado por uma imensa baleia louca, que foi a pique deixando a tripulação no meio do nada no Pacífico, na década de 1820, em botes salva-vidas).

O último dessa coleção foi o excelente A incrível viagem de Shackleton, de Alfred Lansing, publicado originalmente em 1959. Posso garantir que o subtítulo, A mais extraordinária aventura de todos os tempos, não é exagero. A história é mesmo impressionante, mas Lansing tem o imenso mérito de transformá-la num verdadeiro "page-turner", levando a reportagem ao estado de arte.

Sem medo de spoilers, porque afinal a história é real, a quarta capa do livro nos conta:
No verão de 1914, Sir Ernest Shackleton parte a bordo do Endurance em direção ao Atlântico Sul. O objetivo de sua expedição era cruzar o continente antártico, passando pelo Polo Sul. Mas, a apenas um dia do ponto de desembarque planejado, o Endurance fica aprisionado num banco de gelo no mar de Weddell e acaba sendo destruído.
Por quase seis meses, Shackleton e sua tripulação sobrevivem em placas de gelo em uma das mais inóspitas regiões do mundo, até que conseguem iniciar sua tentativa de retorno à civilização nos botes salva-vidas.
Através dos diários e entrevistas com alguns membros da tripulação, Alfred Lansing reconstrói as dificuldades que a tripulação do Endurance enfrentou. Em uma narrativa fascinante, Lansing descreve como Shackleton conseguiu que, após quase dois anos do início da viagem, todos retornassem com vida.

Está aí contado o início e o final da história: Shackleton e sua trupe viajam para a Antártica, tudo dá errado, mas no fim todos sobrevivem. Mas entre o início e o final... quanta coisa incrível acontece. E aí entra o talento de narrador de Lansing. A primeira frase já te prende de forma irremediável: "A ordem de abandonar o navio foi dada às cinco da tarde".

O Endurance preso no gelo

O Endurance era um super navio, fabricado especialmente para enfrentar os mares polares, todo reforçado para suportar a pressão do gelo etc. E no entanto, naquele inverno especialmente rigoroso, nada disso foi suficiente. O navio ficou preso no gelo, e aos poucos as imensas placas de gelo passaram a pressionar o casco contra o continente antártico. Foi uma morte lenta, a do Endurance. A tripulação começou a ouvir os estalos, mais e mais frequentes, até que as vigas começaram a abaular.

O barulho no interior do navio era indescritível. O compartimento meio vazio funcionava como uma gigantesca câmara de ressonância, amplificando cada estalido de tábua e o som de cada viga que se partia. Estavam apenas a poucos metros de distância dos costados do navio e podia ouvir os golpes que o gelo assestava contra o lado externo do casco, tentando abrir caminho à força.

Passaram nove meses entre o dia em que o navio ficou preso e o dia em que efetivamente afundou e foi engolido pelo gelo. A situação era ridiculamente dramática: abandonar o navio no meio do gelo, pegar todas as provisões possíveis, os botes salva-vidas, os trenós e os cachorros que os puxavam. Não tinham rádio nem qualquer espécie de comunicação. Levantaram acampamento numa imensa banquisa de gelo, e lá ficaram durante cinco meses, inclusive durante o inverno, quando não há luz do sol.

Shackleton, o cara

Depois de muito tempo, já experts em caçar focas e pinguins para comer, Shackleton e seus 27 subordinados concluíram que era preciso tentar sair dali de alguma forma. E começam uma longa caminhada, pelo gelo e neve, puxando barcos e provisões. Os cachorros foram sacrificados, porque a comida escasseou e não era mais possível alimentá-los.

Havia poucas razões para otimismo. A temperatura permanecia em torno do ponto de congelamento, de modo que durante o dia a superfície das banquisas se transformava num verdadeiro lodaçal. Eram obrigados a andar enfiando as pernas até os joelhos na mistura de água com neve e gelo, e muitas vezes os homens afundavam até a cintura num buraco invisível. Assim, suas roupas estavam permanentemente encharcadas, e seu único consolo era enfiar-se na umidade comparativamente suportável de seus sacos de dormir a cada noite.

Há passagens inacreditáveis, com as banquisas de gelo diminuindo de tamanho, se partindo, as pessoas caindo de repente na água gelada e sendo resgatadas pelos companheiros, e o vento inclemente, que parecia soprar sempre na direção contrária à desejada.

Acampamento precário numa banquisa

O vento aliás é personagem fundamental dessa história, pois era ele que decidia para que lado iam as placas de gelo onde estavam os 28 desventurados. A certa altura as placas de gelo se tornam impraticáveis, e eles precisam abandonar boa parte da bagagem, embarcar nos três pequenos botes salva-vidas e rumar para a ilha mais próxima.

O curso que seguiam ficava bem de frente para a direção em que as vagas se deslocavam e em poucos minutos estavam subindo uma montanha de água com uma encosta de quase um quilômetro de comprimento. Quando chegaram ao cume, o vento uivava, soprando a espuma em franjas delgadas e finíssimas. Depois começaram a descer, uma descida lenta mas íngreme, rumo ao vale que os levaria até a próxima onda. O ciclo se repetiu vezes sem conta. (...)
Era como se tivessem emergido subitamente em pleno infinito. Tinham o oceano à sua volta, uma vastidão hostil e deserta.

Em parte por perícia, em parte por sorte, depois de uma viagem de alguns dias num mar impossível, conseguem todos chegar à ilha Elephant, um lugar totalmente inóspito onde nenhum homem jamais havia pisado até então. Lá novamente levantam acampamento, e depois de alguns dias, Shackleton decide partir, no maior dos botes, com outros 5 tripulantes, para tentar chegar à ilha Geórgia do Sul, estação baleeira e último posto onde o Endurance havia atracado antes de sua viagem final. Os outros 22 (incluindo um marinheiro que teve um ataque cardíaco quando desembarcou, e outro cujo pé gangrenou) ficam na ilha Elephant, numa cabana precária,
improvisada com os outros dois barquinhos emborcados, comendo carne de foca e bebendo água de degelo. Nesse grupo estão dois médicos, um fotógrafo, um geólogo, um físico e outros marinheiros.

Outros destinos, como o Cabo Horn, na Patagônia, ou as ilhas Malvinas, eram mais próximos da ilha Elephant. Mas o vento, mais uma vez ele, soprava sempre para o leste, e por isso escolheram a Geórgia do Sul como destino. Essa viagem, da ilha Elephant até a Geórgia do Sul, é um drama só. São 16 dias no mar mais inóspito do planeta, enfrentando ventos, nevascas, baleias, e praticamente sem comida.

Quando finalmente conseguem desembarcar em segurança na ilha, estão no lado oposto de onde havia civilização. E aí, por incrível que pareça, Shackleton decide que 3 homens ficarão com o
barco na praia onde desembarcaram, e ele e mais 2 atravessarão a ilha. A pé.

Sei que estou me repetindo e já usei as palavras inacreditável e incrível mais vezes do que seria razoável para um texto só, mas não tem como ser diferente. Basta olhar para a foto abaixo, que mostra a paisagem da Geórgia do Sul.

Agora, como deve ter sido subir e descer essas montanhas de neve, sem equipamento de alpinismo, sem mapa, com comida para um par de dias, sabendo que 28 vidas dependem do seu sucesso na empreitada? A parada é tão sinistra que, nas últimas décadas, muitas equipes tentaram refazer a travessia da Geórgia do Sul, e poucos conseguiram (mas com equipamento, comida, GPS etc.). Um exemplo neste site.

O momento em que finalmente chegam à pequena estação baleeira é arrepiante. Três homens imundos e barbados vão bater à porta do chefe da estação.

Quando viu os três homens, deu um passo atrás e uma expressão de incredulidade tomou seu rosto. Passou um longo momento chocado e calado, antes de conseguir falar.
-- Mas quem diabos são vocês? -- disse afinal.
O homem do centro deu um passo à frente.
-- Meu nome é Shackleton -- respondeu em voz baixa.
Novamente fez-se silêncio. Há quem diga que Sorlle virou o rosto e chorou.
Ninguém podia acreditar naquilo. Fazia um ano e meio que o Endurance tinha zarpado dali para sua expedição antártica -- e desde então ninguém nunca mais tinha ouvido falar deles.

Quatro veteranos comandantes noruegueses, de cabelos brancos, se adiantaram. Seu porta-voz, falando norueguês, traduzido por Sorlle, disse que navegavam pelo Atlântico havia 40 anos e que queriam apertar as mãos dos homens que conseguiram trazer um barco aberto de 22 pés da ilha Elephant até a Geórgia do Sul, através da passagem de Drake.
Depois, todos os homens que se encontravam na sala se levantaram, e os quatro velhos comandantes apertaram as mãos de Shackleton, Worsley e Crean, cumprimentando-os pelo que haviam feito.
Mas calma, o perrengue ainda não acabou. Shackleton consegue rapidamente um rebocador para dar a volta à ilha e pegar os 3 companheiros que haviam ficado no lado não habitado da Geórgia do Sul. O problema era voltar para pegar os 22 que ficaram na ilha Elephant. Foram mais de três meses tentando chegar lá, mas o banco de gelo que cercava a ilha parecia determinado a não deixar ninguém passar. Um desesperado Shackleton implorava aos governos do Chile e do Uruguai navios maiores que pudessem vencer o gelo, mas a cada tentativa as embarcações voltavam avariadas. Finalmente em 30 de agosto de 1916, quatro meses depois que Shackleton partiu da ilha Elephant em busca de ajuda, os náufragos -- que até então não sabiam sequer se Shackleton tinha sobrevivido ao primeiro dia no mar -- foram resgatados.

A história da expedição malograda de Shackleton é bastante conhecida. Parece que o Amir Klink é um dos que falam muito dele em seus livros, que eu desgraçadamente nunca li. Mais do que um bom homem do mar, Shackleton é considerado um exemplo de liderança, por ter conseguido manter elevado o moral dos tripulantes do Endurance durante muito tempo. De fato, pelos diários que servem de fonte a este livro, as pessoas demoraram muito, mas muito mesmo, para se dar conta de que estavam numa situação absolutamente desfavorável. Que sua chance de sobrevivência era irrisória. Tudo isso graças à impressão de tranquilidade e normalidade que o Shackleton passava a todos.

A incrível viagem de Shackleton é um livraço de aventura. Só lamento que a edição brasileira não traga as fotos da expedição, que, pasmem, foram preservadas. Mas elas podem ser vistas neste site, por exemplo. O fotógrafo e membro da expedição era Frank Hurley.

24.2.11

100.000




Que emoção!

22.2.11

Sombra e água fresca




Porque o verão é detestável, mas nem sempre.

15.2.11

A última geração epistolar

Coisa de algumas semanas atrás, minha mãe me ligou e pediu que eu fosse à casa dela para dar um destino a umas tralhas minhas que ainda estavam por lá. Ela fez obra, pintou o apartamento, e aproveitou para dar aquela limpa. Então lá fui eu, num clima bem pouco emotivo, mandando tudo pro lixo, exceto diários, cartas e fotos. De resto, foi tudo embora: anos e anos de programas de shows e concertos aos quais assisti, cadernos e apostilas de francês e alemão, muitos blocos de apuração da época em que eu escrevia matérias e reportagens, minha coleção de borrachas cheirosas, minha coleção de bottons, mapas de dezenas de cidade da Europa, brochuras de museus que visitei em outros países, todos os textos da faculdade (Platão, Deleuze, Kristeva, Jakobson, Saussure, Barthes et alii) viraram rascunho, pastas e fichários, pranchetas e estojos, até a placa da minha antiga scooter ainda vivia por lá.
Mas, claro, ninguém é de ferro, e alguma memorabilia inútil sobreviveu: meus boletins e cadernetas de colégio, um "Livro de Bamba" com dezenas de letras de samba que meu compadre P. fez para mim em priscas eras, e uma caixa com minha coleção de papéis de carta.
Não sei se isso ainda existe hoje em algum lugar desse vasto mundo. Mas na minha época as meninas todas colecionavam papel de carta. Vendia na papelaria, com os desenhos e decorações mais variados. As mais maníacas, como eu, guardavam seus exemplares em pastas com folhas de plástico, e trocávamos muito, porque em geral comprava-se uma caixa com vários exemplares. Quando alguém trazia papel de carta do exterior era uma glória, eles ficavam muito valiosos -- dava pra trocar um importado por vários nacionais. Enfim, era todo um mercado, com variáveis que ditavam o valor de face de cada um.
Lembro-me que quando mostrava minha coleção a algum adulto, invariavelmente vinha a pergunta: mas você não vai escrever nenhuma carta nesses papéis tão bonitos? Eu revirava os olhos diante de tanta incompreensão. Como alguém podia cogitar usar aqueles papéis?
Enfim, o tempo passou e eles continuam lá, agora guardados nessa caixa que salvei da tsunami da arrumação da mamãe. Quero usá-los, é claro, mas não é tão fácil encontrar destinatários para cartas, esses dias. Mais difícil ainda é escrever uma carta a mão, em papel. Não só a mão dói como é um sufoco não poder editar o texto depois.
E aí fiquei pensando que a minha geração (os nascidos na década de 1970) foi provavelmente a última geração epistolar. Fomos os últimos a experimentar o frisson de uma carta que chega em seu nome; os últimos a sentar para escrever uma carta e fazer apenas isso (sem checar emails, sem navegar, sem ler notícias de último momento); os últimos a levar aquela carta manuscrita em folhas de caderno (frente e verso) para um lugar onde ninguém mais nos atrapalhasse, para ler em paz; os últimos a ter selos em casa (eu ainda tenho alguns); os últimos a achar normal uma carta levar de uma a duas semanas para chegar de um país ao outro; os últimos a conhecer o papel aéreo, aquele bem fininho, para não pesar a correspondência; os últimos a ter em casa aquele envelope aéreo, também mais fino, com franjinhas verde-amarelas e a anacrônica expressão francesa impressa: "Par Avion".

Lembro-me muito bem da sensação de incredulidade quando minha mãe me disse que quando ela era criança só existia a TV Tupi e que só tinha programação algumas horas por dia -- a maior parte do tempo era a imagem estática de um índio. Pior ainda quando meu pai me disse que foi na infância dele que surgiu a caneta esferográfica -- e que revolução aquilo foi para ele. Também achava remotíssimo saber que meus pais tinham vivido na capital do Brasil, e que isso aqui se chamava estado da Guanabara.
Por tudo isso, sempre achei que seria normal haver muitas diferenças entre a minha infância/adolescência e a dos meus filhos. A primeira coisa que pensamos, em geral, é em computador, internet e celular -- como não tínhamos, e, por incrível que pareça, vivíamos nossas vidas. Sim, sempre pensei que isso seria algo que me divertiria quando tivesse que explicar aos meus filhos: que quando combinava algum programa com os amigos, tudo tinha de estar planejado e acertado antes de sair de casa, porque, uma vez na rua, não havia mais jeito de ser encontrado. E, por estranho que possa soar, as coisas funcionavam, e até bem.
Eles também vão achar curioso saber que quando eu precisava fazer uma pesquisa para a escola sobre algum assunto, ia a uma biblioteca, pegava uma enciclopédia e me punha a copiar as coisas, a mão mesmo. E quando ouvia uma música em algum lugar e gostava, às vezes tinha que rodar muitas lojas para encontrar um disco.
Tudo isso eu já sabia que seriam grandes diferenças entre a minha geração e a deles.
Mas aos poucos fui percebendo outros detalhes.
Minha filha, que tem 3 anos, assiste a seus desenhos em DVD ou no YouTube. Nós não temos nenhum sinal de TV - nem aberta, nem a cabo. Por isso, ela assiste aos mesmos desenhos inúmeras vezes, na hora que quer (mais ou menos, claro), na ordem que deseja. E se precisa ir ao banheiro, ela pede para alguém "dar um pause" (sic). Ela nem imagina que, quando eu era criança, se quisesse assistir a algum desenho, era preciso postar-se à frente da TV na hora tal. Se atrasasse, perdia, tinha de esperar até o dia seguinte. Um canal inteiro só de desenhos? Haha. Só em sonhos.
Ela também terá dificuldade para entender o alvoroço que era quando se esperava uma ligação internacional. No dia e hora combinados (em geral domingo, que era mais barato), ninguém podia nem mesmo se aproximar muito do telefone, esperando a mítica ligação. Era difícil, muitas vezes se ouvia mal, e tinha-se de falar rápido, porque custava uma fortuna. Aliás, não sei se ela vai, algum dia, dar conta de entender o conceito de uma casa com apenas um aparelho de telefone, daqueles de disco, com um fio compridíssimo, para poder chegar nos quartos. Sim, os aparelhos sem fio já existiam, mas eram enormes e pesados, com antenas gigantes, a recepção era horrorosa e ainda por cima eles davam choque. Não sei se vou conseguir explicar o macete de discar um número de telefone só dando batidinhas rápidas no lugar onde o telefone desligava -- era uma típica gambiarra do sistema de pulsos.
Fico pensando ainda se sobreviverá mais uma geração o (estranho) hábito de se escrever "hum mil". Eu até hoje escrevo assim, quando se trata de valores. Hum mil reais. Segundo me ensinaram, era uma forma de se prevenir contra fraudes. Escrever apenas "mil reais" dá margem a alguém tascar um "dez" na frente do mil. Mas pior era escrever "um mil", sem agá: um gatuno poderia, em dois tempos, transformar "um" em "cem". E o pior é que falavam de um jeito que dava um medo horrível que isso acontecesse.
Não sei se ela vai chegar a ver de perto um filme fotográfico - de 12, 24 ou 36 poses. Talvez tenha dificuldade de entender que era preciso esperar até o filme acabar, e que ninguém tirava foto à toa, porque a revelação custava caro. Entre o registro fotográfico e o momento em que se via o resultado impresso no papel passavam-se normalmente muitos e muitos dias. Sem falar que, óbvio, a foto não aparecia no lado de trás da máquina. E que ninguém, em sã consciência, tiraria mais de 100 fotos numa viagem de férias.
Tem milhões de outros detalhes. Subia-se nos ônibus pela porta de trás, e as pessoas fumavam nos ônibus, nos aviões e nos elevadores. O que ela vai conhecer como "make" eu chamo de "maquiagem", a "bike" dela será sempre minha "bicicleta", e as cores eu continuo chamando pelo nome antigo (lilás, e não lavanda; roxo, e não aubergine; gelo, e não off-white).
Eu poderia continuar listando indefinidamente essas pequenas coisas que se acumulam no abismo que separa as nossas gerações -- não fosse pelo fato de que já é meia-noite e eu preciso dormir (já contei que voltei a trabalhar? pois então.)
Mas gostaria de ouvir de vocês, quais são essas pequenas diferenças de comportamento/estilo de vida que não imaginaram que um dia teriam de explicar aos filhos?

3.2.11

E W D G O

-- Este ou este?
-- Este.
-- E agora? Este... ou este?
-- O primeiro.
-- Melhor agora?
-- Melhor.
-- Este?... Ou este?
-- Este.

Adoro ir ao oftalmologista para a consulta de rotina.

1.2.11

MinC, Direito autoral, e o falso embate entre modernos e conservadores

Tenho acompanhado com interesse a polêmica em torno da retirada da licença Creative Commons do site do ministério da Cultura. Questões de direitos autorais são um assunto muito frequente tanto em casa quanto no trabalho, portanto me informo o quanto posso, e gosto de ouvir opiniões contrastantes.

Pessoalmente, não vejo problema nenhum em o site do MinC usar a licença CC, como vinha fazendo há anos. Por outro lado, também não vejo problema nenhum em o MinC não usar a licença CC, e substituí-la por uma frase de teor semelhante.

Mas se é desnecessário, por óbvio, dizer que essa troca de seis por meia-dúzia está cheia de significados políticos, é também de uma má-fé extrema enxergar esse ato como uma ruptura radical com toda a política da gestão anterior (PV: Gilberto Gil/Juca Ferreira). Pior ainda é, a partir daí, acusar a ministra Ana de Hollanda de ser alinhada com o Ecad e de iniciar uma "ofensiva contra a liberdade de conhecimento".

E a partir dessas premissas vai ganhando corpo a dicotomia falsa entre “modernos” x “conservadores”. Que funciona mais ou menos assim: os “modernos” são a favor da revisão da legislação do direito autoral, defensores do Creative Commons, partidários da cultura digital e baluartes da livre circulação das ideias e da cultura. São uns jovens de espírito livre. Os “conservadores” não querem mudanças na lei de DA, são contra o Creative Commons, só pensam a cultura em termos de mercado e não compreendem ou não aceitam a nova realidade em que a cultura e as ideias são livremente compartilhadas. São uns dinossauros.

Posto assim, fica caricato. Mas, claro, não é bem isso. É estranho, mas tenho a impressão de que muita gente boa “compra” essa pecha de careta e veste a carapuça de conservador. Não ajuda muito a causa uma porção de artigos raivosos que apregoam uma tomada de partido radical e esculhambam a gestão do PV na Cultura como gente que “odeia a música brasileira”. Por outro lado, é preciso no mínimo parcimônia para ficar cagando regra a respeito do ganha-pão alheio. Direito autoral é a remuneração de muita gente, há muitos anos. Não são poucos os que dedicaram a vida a criar as obras que todos guardamos em nossos corações, com a perspectiva de ser remunerado cada vez que essa obra fosse vendida ou executada publicamente. E, pelamor, não há nada de porco capitalista nisso. Eu, você e a torcida do Mengão esperamos ser remunerados pelo nosso trabalho. Para quem é compositor, música é profissão, não é hobby. (Falo especialmente dos compositores porque é na música que a coisa se dá num nível de maior radicalização.) E é um profissão de empreendedor, que não tem patrão, ponto, carteira assinada nem décimo terceiro.

Pois esses supostos "dinossauros" não são idiotas. É óbvio que já perceberam que a venda de fonogramas -- e sua consequente remuneração -- é uma atividade que nasceu e morreu com o século XX. Lojas de discos nem existem mais, e a venda de arquivos de música jamais chegará aos patamares que os LPs e CDs um dia alcançaram. Então nem é bem essa a discussão. Posso estar errada, mas nem vejo muito mais a questão da proibição do compartilhamento P2P de arquivos MP3. Acho que essa onda já passou há anos, com o Napster e o Metallica.

Mas tem umas sugestões muito maliciosas nesse discurso pela "livre circulação". Por exemplo, que não se deve cobrar direito autoral quando uma obra será executada num evento sem fins lucrativos, ou com entrada franca. Lá vêm os partidários da "cultura livre" dizer que quem vai contra isso é dinheirista e tem uma visão mercantilista da cultura. Por exemplo: um mega show na praia de Copacabana. Naturalmente, entrada franca. Pouco importa se quem está realizando o espetáculo é uma empresa privada ou uma entidade pública. Invariavelmente, lá vem a reclamação a respeito do pagamento do direito autoral ao Ecad.

A lógica: se o show é de graça, a música deve ser de graça. Mas vamos ver: o artista que está lá fazendo o show, em cima do palco, será sem dúvida remunerado. A empresa que faz a sonorização, também. Os montadores do palco, idem. O pessoal da limpeza. A assessoria de imprensa. Ninguém deixa de ganhar pelo fato de o show ser de graça, não é mesmo? Então por que o autor da música (pressupondo que o autor não seja o próprio intérprete) é o único que deve abrir mão da sua remuneração? Afinal, esse é o trabalho do autor. Quando compôs e editou aquela música, além de atender ao chamado das musas, ele o fez com a expectativa de ser remunerado por quem quiser fazer uso da sua criação.

Outro exemplo clássico são ONGs e fundações que pedem aos autores para liberarem graciosamente a reprodução de seus textos em publicações educacionais distribuídas de forma gratuita. Engraçado que ninguém cogita pedir à gráfica que não cobre pela impressão -- porque afinal, é uma iniciativa nobre. Muitos oferecem um "valor simbólico" a ser pago pela liberação dos direitos. Lembro do João Ubaldo Ribeiro dizendo que infelizmente não conseguiu convencer o dono da padaria a trocar seus pães por alguns "símbolos". (João Ubaldo é um que escreve muito e bem a respeito disso, vide seu livro O Conselheiro come, cujo título é justamente sobre o assunto, uma citação da mulher de Rui Barbosa, outro que volta e meia não cobrava pelos seus serviços - leia a história toda aqui.)

Neste caso, o alerta é maior, porque o MinC propõe que não constitua mais ofensa aos direitos autorais "XV – a representação teatral, a recitação ou declamação, a exibição audiovisual e a execução musical, desde que não tenham intuito de lucro, que o público possa assistir de forma gratuita e que ocorram na medida justificada para o fim a se atingir e nas seguintes hipóteses: a) para fins exclusivamente didáticos". Então eu entendo que não há absolutamente nada de errado em se lutar contra essa proposta de mudança na lei. Não é ser conservador, é apenas não ser hipócrita.

Tem outra coisa curiosa: nessa polêmica, os jornais gostam de ouvir "os dois lados". Pois de um lado a gente vê um monte de compositores, principalmente letristas: Fernando Brant, Aldir Blanc, Abel Silva, Paulo Cesar Pinheiro. (Não admira que sejam justamente os letristas, afinal são eles os que praticamente não ganham cachê fazendo shows, pois não costumam ser seus próprios intérpretes.) Mas enfim, são os caras do ofício, são os músicos. Já do outro lado a gente vê produtores, gestores, advogados. Ou seja, o deles não está na reta, aí fica fácil dizer como tem de ser ou deixar de ser o pagamento pelo trabalho dos outros. É o que eu digo: parcimônia nessa hora.

Muitas coisas merecem ser revistas na lei de direito autoral. Cá pra mim, eu acho o período de proteção das obras (70 anos após a morte do autor) muito longo. É um dos maiores engessadores da "livre circulação" da cultura, mas não vejo ninguém brigando para diminuir esse tempo. A obra de Dorival Caymmi, por exemplo, só cairá em domínio público em 01/01/2079. Renderá dividendos a herdeiros que ainda nem nasceram. Eu e você não estaremos mais aqui para presenciar esse momento. Até lá, seus herdeiros legais podem fazer o que quiserem. Qualquer coisa. Se não gostarem das Canções Praieiras, por exemplo, podem impedir que sejam usadas por quem quer que seja. Se gostarem demais, podem pedir 1 milhão de dólares a quem queira regravar uma delas. Ou 10 milhões. Ou 100. O que quiserem. Absurdo, não? Só o próprio autor poderia ter tamanho poder. Como o Roberto Carlos, que não deixa que gravem certas músicas da época da Jovem Guarda. É uma bobagem, enfim, mas é uma criação dele, e só ele tem o direito inalienável de decidir a respeito dessa criação.

As obras que ainda não caíram em DP mas que não estão disponíveis ao público são outro problema. Obras esgotadas. Atire a primeira pedra quem nunca viveu o drama de um disco ou livro esgotado. Vocês lembram como eu mesma comemorei a reedição do Dicionário analógico da língua portuguesa, depois de décadas esgotado. Outro exemplo, um livro muito mencionado em 2010 por conta do centenário, é a excelente biografia de Noel Rosa escrita por João Máximo e Carlos Didier, publicada pela Editora UnB em 1990 e há muito esgotada. Eu tenho o meu exemplar, encapado, plastificado, e não empresto pra ninguém. Dei uma olhada agora na Estante Virtual e vi 2 exemplares à venda: um por R$250, outro por R$468. É caso de deixar em testamento. Já ouvi diferentes versões sobre o porquê de este livro não estar mais disponível. Uns dizem que é porque eles citam muitas letras do Noel, e as editoras das músicas teriam cobrado uma grana pela reprodução, que não foi pago então teve que se retirar do mercado. Outra versão vai por conta da briga entre os dois autores. Outra ainda, diz que a editora não reimprimiu. Seja como for, é uma lástima.

Pelo que entendi da proposta de mudança na lei, se a Presidente da República (ela mesma, ninguém menos) entender que a obra é de interesse nacional, ela pode ser republicada, isenta de direitos autorais. Há aí um equívoco entre direito autoral e direito de edição. Presume-se que os autores tenham assinado um contrato de edição com a UnB, que lhe dava exclusividade para editar, imprimir e comercializar a obra literária. Se a editora deixou de cumprir, ou se o prazo do contrato expirou, então ela perde o direito de explorar comercialmente, mas não os autores. Ótimo será se a presidente quiser recolocar essa obra no mercado, mas não há razão para não pagar os autores normalmente, um percentual sobre as vendas. Ou seja: um disco ou livro esgotados são geralmente um problema industrial, sobre o qual o autor pouco ou nada pode influir.

Uma outra coisa que me incomoda sobremaneira nessa discussão é o argumento de que o MinC, durante a gestão Gil-Juca, discutiu amplamente a reforma da lei com a sociedade, até chegar no modelo proposto. Houve consultas públicas durante anos, e depois o texto ficou na internet, aberto a sugestões dos internautas. Sim, tudo isso é verdade. Houve mesmo muitas consultas públicas, por todo o país. Eram abertas a qualquer um. Nessas ocasiões, os representantes do Minc expunham suas propostas, e em seguida abriam para ouvir sugestões do público. As pessoas diziam o que queriam. O MinC agradecia e seguia para a próxima. Na prática, o que houve foi que tudo ficou como o MinC queria desde o início. Sugestões houve, das mais razoáveis às mais estapafúrdias, mas elas simplesmente não foram incorporadas. Isso me foi dito por gentes da música e do mercado editorial, que primeiramente iam enquanto "classe", mas depois acabaram desistindo, ao perceber a inutilidade dos esforços.

A consulta pública na internet era pior ainda, porque é aquela coisa da democracia: aparece tudo quanto é maluco e gente sem noção. E era um tal de "é-um-absurdo-o-ecad-vir-me-cobrar-no-meu-casamento", "quero-fazer-a-adaptação-de-uma-peça-mas-os-herdeiros-do-autor-me-pediram-uma-fortuna", que deus me livre. Parecia reunião de condomínio, ou reunião de pais na escola. Cada um só fala de si e dos seus.

Enfim, o papo é longo e rende muitos chopes (alguém? alguém?). O que eu queria mesmo era chamar atenção para o perigo da polarização "modernos" x "conservadores", porque não é nada disso. No mais, sucesso para a nova ministra, em quem confio. Que ela tenha saco e ânimo para se defender dos ataques cabotinos.