30.10.09

33 anos - parte 4

A vida escolar transcorreu sem muitos problemas, ou pelo menos foi isso que ficou na minha memória. Logo fiz amigas no colégio, grandes amigas mesmo, daquelas de ir dormir na casa umas das outras. Hoje não tenho mais contato regular com ninguém do tempo do St. Patrick's. Esporadicamente encontro uma pessoa ou outra, mas nada muito relevante. Uma das minhas melhores amigas teve uma filha aos 13 anos, outra é atuamente diretora de novelas da Globo, uma terceira tem um salão de beleza no Leblon. Eu tirava boas notas, e não me preocupava muito em estudar em casa. Fazia os deveres, e só. Teve a época da tabuada, claro, que foi um pouco marcante. Minha mãe e meu pai, que se empolgou imensamente com a brincadeira, acreditavam piamente no aprendizado por meio da repetição, e viviam me perguntando, o dia todo, nos momentos mais inusitados: três-vez-oito? cinco-vez-sete? seis-vez-nove? Minha prima, uma série à minha frente, me ensinou a mágica da tabuada de nove: fazer duas colunas de algarismos, uma crescente, e outra decrescente, de 0 a 9 (0-9/1-8/2-7/3-6), e voilà.
Meu pai me ensinou a andar de bicicleta sem rodinha em plena rua, no Leblon. Hoje seria impensável, mas minha lembrança é nítida. Na calçada das ruas principais do bairro, ele correu atrás de mim segurando a parte de trás da bicicleta enquanto eu gritava para não soltar, mas quando vi, já tinha soltado há muito tempo e eu estava pedalando sozinha, sem rodinha. Ele me levava também para soltar pipa no Aterro do Flamengo, e organizava jogos de pique-bandeira ali na rua também, na General Urquiza, com outras crianças que moravam na área. Foi meu pai também quem me ensinou a jogar damas, e depois xadrez. (Numa olimpíada de colônia de férias, minha única medalha de ouro foi em damas!) Além disso, me dava muitos livros para ler. Acho que ninguém ficou tão feliz quanto meu pai, que é escritor, com a minha precocidade em aprender a ler. Outro dia achei uma carta que ele me mandou quando eu tinha 4 ou 5 anos. Ele estava em outra cidade, e me mandou pelo correio (envelope no meu nome!) uma carta batida à máquina dizendo o quanto ele estava contente porque agora eu já podia ler. Eu gostava de ler, e lia bem. Sempre me voluntariava para ler em voz alta na escola, e achava que os meus colegas liam horrivelmente mal -- ou pelo menos muito pior do que eu. Meu pai me ajudou a escrever um livro, "O Leão Triste", que demos de presente para minha prima no aniversário dela. Era uma colagem de figuras (leões, naturalmente) com desenhos e algum texto, escrito por nós dois. Não lembro qual era a história do leão triste, apenas do título. Minha prima também se lembra, mas acho que não tem mais o exemplar.
Não fui a criança mais atlética do mundo -- nem a menos. Continuava no balé. Fiz natação um tempo. Depois fiz ginástica olímpica no Flamengo, e mais tarde vôlei, no mesmo clube. Nunca era a melhor nem a pior. Na escola jogava queimado quase todo dia no recreio. Gostava da aula de educação física, mas, talvez por ser filha única, odiava quando meu time perdia. Foi assim que me envolvi na primeira e única porrada da minha vida, ainda na primeira série, numa aula de educação física, com uma menina feia, gorda e chata que ficou sacaneando meu time depois que perdemos. Foi também numa aula de educação física, no primário, que passei por uma das situações mais constrangedoras de que tenho lembrança. O St. Patrick's não tinha quadras cobertas para prática de esportes. Apenas um pátio, onde era o recreio e também as aulas de ed. física. Quando chovia, íamos para um auditório no último andar, que tinha um palco e um espaço grande e vazio onde, quando necessário, colocava cadeiras dobráveis. Num desses dia de chuva, durante a aula de ed. física, o professor propôs um jogo qualquer, com duas equipes. Não lembro os detalhes, exceto que era uma coisa meio complicada, sai dessa fila, levanta, pega uma bola, coloca em tal lugar, volta, passa o bastão para o próximo da fila, algo assim. Nem todo mundo entendeu as regras direito. As duas equipes ficavam sentadas no chão, e só uma pessoa de cada equipe ficava em pé, por vez, correndo para fazer as tais coisas com bolas, bastões, etc., até passar para o companheiro seguinte da equipe. Bem. A uma certa hora, num time estava A., que era minha melhor amiga, mas meio lesada das ideias, e no outro time outra menina, também limitada e insegura. As duas se confundiram e erraram tudo o que tinha para fazer, de uma maneira realmente patética. Todo mundo riu, e elas ficaram com vergonha. Mas a vergonha delas foi rapidamente desviada para mim, que ri tanto que fiz xixi na calça. Muito xixi. Tipo, havia uma poça de xixi em volta de mim. Eu não sabia o que fazer, onde me enfiar. Não queria levantar da minha poça de xixi, fiquei ali chorando até todo mundo levantar e voltar para a sala de aula. Eu nem voltei pra aula, fui pra casa mais cedo, totalmente humilhada pela minha própria incontinência urinária. Essa coisa de rir muito e fazer xixi na calça me acompanhou até a adolescência. Passei por situações muito desagradáveis por causa disso, mas nenhuma tão pública e tão traumática quanto essa da aula de educação física, que foi na primeira ou segunda série (ou seja, eu tinha algo em torno de 7 ou 8 anos). Deve ser algo genético. Minha mãe tinha o mesmo problema. Para ela o momento mais traumático foi quando, adolescente, com uma prima, conseguiram burlar a segurança de um hotel para falar com o Anthony Perkins (ou Jean-Paul Belmondo, agora não lembro, mas era um astro de cinema que elas idolatravam), que estava hospedado ali. Inacreditavelmente, conseguiram chegar na porta do quarto onde o ator estava hospedado, só para ter um ataque de riso, durante o qual minha mãe fez uma cascata de xixi e teve que sair correndo. Mas enfim, ainda acho que meu caso foi pior.
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23.10.09

33 anos - parte 3

Primeira parte
Segunda parte

Aos 6 anos tive que deixar o Patronato da Gávea, que só ia até o C.A., e entrei no Colégio St. Patrick's, depois de fazer prova para a primeira série. Não era uma grande prova, como hoje existem os "vestibulinhos" para entrada no ensino fundamental. Lembro de fazer essa prova sozinha, na sala da coordenadora ou coisa do tipo, uma folha com questões em letras violeta e ainda exalando cheiro de álcool do mimeógrafo. Tudo aquilo era novidade para mim, que não estava acostumada a testes, provas, etc. Não sei por que meus pais escolheram o St. Patrick's, um colégio irlandês, bem tradicional (ecos bostonianos, talvez?). Não conhecíamos ninguém que estudasse lá. Aposto minhas fichas no quesito praticidade. O St. Patrick's era na mesma rua onde eu morava, a meros 3 quarteirões de distância. Era (ainda é) um colégio médio em tamanho. Na época tinha duas turmas de cada série, com cerca de 25 alunos cada uma; ia do C.A. à oitava série, e hoje em dia tem segundo grau (ensino médio, que seja). A dona do colégio era uma senhora irlandesa, temidíssima, Mrs Maureen, que falava com um sotaque carregado, como se tivesse chegado ontem de Dublin. Ou Belfast. Parece que ainda é viva, volta e meia alguém me diz que a viu fazendo compras num supermercado do Leblon. Se for verdade, Mrs Maureen deve ter uns 120 anos, por aí.
O diferencial "irlandês" do St. Patrick's era o ensino de inglês. Desde a primeira série tínhamos aula de inglês cinco vezes por semana. O colégio tinha também turmas especiais para estrangeiros, com todas as matérias em inglês. Mas essas turmas eram de manhã, eu estudava à tarde e não tinha contato com os angloparlantes. A professora de inglês dos cinco dias por semana era a mesma da primeira à oitava série: Teacher Terezinha. Tanto convívio era fatal, e na terceira série todo mundo já detestava a professora e seu ritual diário: Good afternoon, class; Good afternoon, Teacher; How are you today?; I'm fine, thank you, and you, Teacher?; I'm fine, thank you, class. A turma falava em uníssono. Ainda no quesito Irish Pride, comemorávamos o St. Patrick's Day todo 17 de março. Até hoje sempre me lembro da data.
Como de costume, a primeira série foi o início de uma vida institucionalizada, de rotinas, horários, deveres de casa. No primeiro dia de aula, eu com meu novo uniforme, de blusa branca de botões com um trevo bordado no bolso do lado esquerdo, saia de pregas verde, meia branca e sapato preto tipo boneca, fiquei fascinada com a possibilidade de comprar lanche na hora do recreio. Aquilo era uma novidade completa. Fui, com a maioria das crianças, para o refeitório comer o lanche fornecido pela escola (groselha, biscoitos de maizena), mas fiquei pasma com os alunos que compravam misto quente e coca-cola (garrafinha caçula) na cantina. Levar dinheiro para escola! De qualquer forma, eu levava dinheiro muito raramente, e quando isso acontecia quase sempre era para comprar biscoitos de polvilho ou paçoca. No dia-a-dia, ficava mesmo com a groselha e os biscoitos maria -- e achava aquilo muito bom.
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14.10.09

S.O.S. doação de livros

Temos uma porção de livros estrangeiros novos lá no trabalho, enviados por editoras ou agentes literários como opções para publicação, que decidimos não publicar. As editoras/agentes não pedem os exemplares de volta. Nós também não queremos ter a despesa de enviar pacotes para o exterior o tempo todo, sem necessidade. Assim, ficamos com esse problema. Centenas de livros novinhos (não só lançamentos recentes como em excelente estado de conservação) ocupando espaço.
Eu tinha arranjado de doar para uma ONG aqui do Rio, mas hoje fiquei sabendo que eles deram para trás e não apareceram para buscar os quase 200 livros já separados e encaixotados, e nem vão mais aparecer.
De modos que:
alguém conhece alguma instituição que se interesse?
São livros em inglês, em sua grande maioria.
Talvez cursos de inglês, ou cursinhos, ou bibliotecas comunitárias?
Sei lá. Alguma ideia?
A única condição é ir buscar (em Botafogo, RJ).
Tem ficção, não ficção, juvenil, infantil...
Quem tiver alguma sugestão, por favor indique nos comentários.
Obrigada.
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13.10.09

F*ck the fashion

12.10.09

33 anos - parte 2

Continuação daqui.

Todas as minhas memórias, portanto, são de viver numa casa só de mulheres, nós 3 sempre, eu, mamãe e a babá/empregada. Meu pai aparecia de vez em quando, nem muito ausente, nem muito presente. Minhas avós estavam sempre mais próximas, em especial a mãe do meu pai, que, acho, procurava suprir as lacunas deixadas por ele. Além disso, era eu sua neta única, condição que durou muitíssimo tempo. Já para minha avó materna fui a 9ª dos 12 netos e 13 bisnetos que ela conheceu enquanto viveu (até 2003, pouco antes de completar 90), portanto já era mesmo de se esperar um tratamento, digamos, menos "exclusivo".
Por volta dos 3 anos fui para a escolinha, o Patronato Operário da Gávea, que na verdade não fica na Gávea, e sim no Jardim Botânico, bem perto da Lagoa. Houve épocas em que meu pai me levava todos os dias de ônibus, e em outras épocas era a babá. Depois passei a ir de condução, como se chamava na época. Era uma Caravan com uma dúzia de crianças amontoadas na caçamba -- precursora das vans que existem hoje. Acho que gostava do Patronato. Lembro da hora de dormir, quando cada criança tinha sua própria esteira, e eu, mesmo já grande, ainda precisava da minha chupeta para dormir. Esse vício eu só larguei aos 6 anos, com muita dificuldade. Eu me envergonhava, queria largar, mas não conseguia. Queria dormir na casa de meus primos, na casa das amigas, e tentava, sem a chupeta. Mas na hora de dormir, não havia jeito. Alguém ia sempre me buscar, já tarde da noite. Um sofrimento.
Em casa, no meu quarto, uma das paredes era liberada para escrever e pintar. Era a alegria dos meus primos, quando iam lá em casa, aquele recanto de liberdade infantil. Meus primos maiores escreviam lá no alto, muito acima do meu alcance. Eu passava as tardes rabiscando a área abaixo de um metro de altura. O mais curioso é que foi ali, naquela parede, que aprendi a ler e escrever. Foi durante umas férias de verão, e eu era muito novinha, uns 4 anos. Quando as aulas recomeçaram, eu deveria ir para o Jardim II, mas como já estava lendo, e bem, me pularam para o C.A. E foi assim que me tornei, para sempre, a caçula da turma.
Mais ou menos nessa época minha avó (paterna) me colocou no balé. Na escola de dança Dalal Achcar, onde estudava a nata da fina flor da sociedade carioca. E eu. Minha avó me apanhava de carro duas vezes por semana, me levava para a aula, esperava lá, e me trazia de volta para casa. É engraçado, minha avó sempre teve essa coisa bem suburbana de querer parecer fina. Se vestir super bem para ir me levar ao balé. Querer que eu estudasse na escola de balé mais grã-fina. E eu curtia isso muito. Por exemplo, ela tinha carro, o que para mim era o máximo. Nem minha mãe nem meu pai tinham carro, a gente fazia tudo de ônibus. Minha avó tinha um Voyage dourado, que eu achava chiquérrimo. Já a mãe da minha mãe tinha um Fusca bege (apelidado pela família de "Pata de Elefante"), que eu achava de uma pobreza tamanha. Minha tia adora contar uma história (de que eu não me lembro, claro) segundo a qual eu teria dito, com cara de nojinho, que em Fusca eu não entrava -- isso para mostrar como minha outra avó tinha me transformando numa mini-perua-wannabe. (Parênteses para registrar o fato curioso de minhas duas avós -- nascidas em 1913 e 1924 -- terem trabalhado fora a vida inteira, e dirigido seus próprios carros. Não era comum para a geração delas, e sem dúvida fui muito influenciada por essa postura de vida.) Mas enfim, o balé era legal, e eu continuei até uns 12 ou 13 anos, quando mudei para jazz e depois para o sapateado. Tenho ótimas lembranças do balé, inclusive de ter dançado uma temporada do "Quebra-Nozes" no Teatro Municipal no final de 1984 ou 85, por aí, como parte do corpo de baile infantil. Era um trabalho, e eu gastava a maior onda por ter essa responsabilidade.
Na verdade eu já tinha outros trabalhos. Remunerados. Aos 4 anos comecei a fazer as primeiras gravações de jingles e comerciais de rádio. Aquela coisa, "Papai, não corra na estrada!", etc. E cantava também. Aos 6 eu já estava na panelinha oficial do coro infantil das gravadoras. Minha mãe tinha os contatos no meio musical, viu que eu era afinada, e me pôs pra dentro. As gravações foram uma constante ao longo de toda a minha infância. Até os 15 anos eu ainda fazia uns coros. Era sempre a mesma turminha, para todos os discos. Xuxa, Balão Mágico, Trem da Alegria, Os Trapalhões... you name it. Mesmo outros artistas, como Beth Carvalho, Milton Nascimento, até mesmo Roberto Carlos, às vezes uma faixa precisava de um coro infantil, então lá ia eu. Era o má-xi-mo. Não só pelo lado profissional, mas porque eu matava aula na escola, e quando voltava mostrava todas as músicas em primeira mão para meus amiguinhos. E, céus, como eu gastava onda com isso, ensinando "Ilariê" para todo mundo na hora do recreio, meses antes de o disco sair.

(Continua)
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10.10.09

Pet peeve


Eu não conhecia a expressão "Pet peeve" até ontem, quando li este post, do blogue de uma agente literária americana, que acompanho. Segundo o dicionário, pet peeve é "motivo freqüente de reclamações ou discussões". No post em questão, era isso em relação à língua inglesa. Um dos pet peeves da autora do blogue é a abominável mania de se trocar "you're" por "your", assim como "they're" por "their". Os mais de 100 comentários são ótimos, com as pessoas felizes por terem um espaço para dizer que detestam o mau uso do apóstrofo e das aspas (e vocês já visitaram o hilário site The "Blog" of "Unnecessary" Quotation Marks?), pessoas que usam "that" no lugar de "who", pessoas que dizem "Anyways...", assim mesmo no plural, e milhares de outros casos.

Eu também tenho minhas picuinhas de linguagem. (E aposto que o Revisor e seus leitores terão muito o que acrescentar sobre este tópico.) Fico muito irritada quando vejo um erro de concordância tão frequente quanto idiota: "Fulano foi um dos deputados que mais compareceu ao plenário". "Compareceram", cacete! Dos deputados que mais compareceram, Fulano foi um! Não tem complexidade, é simplesmente uma questão de lógica. Vejo esse erro um dia sim, o outro também.
Em segundo lugar, o infeliz "por que" separado em frase que não é uma interrogação direta. Não sei como puderam perpetrar esse crime por tantas anos na escola: "Por que" separado é em pergunta, "porque" junto é em resposta. Não, não, mil vezes não! Existem mil usos de "por que" em frases não interrogativas. Por exemplo: Não sei por que ensinam isso nas aulas de português. É simples. Não sei por que motivo. Não sei por que razão. Não tem muita margem para dúvida. E se tiver, verte para o inglês. Se for why, é por que. Se for because, é porque.

Nem vou entrar no assunto da pontuação e da crase, verdadeiros traumas nacionais. Acrescento apenas que abomino as pessoas que usam o verbo "realizar" como sinônimo de perceber, dar-se conta. Um anglicismo semântico horroroso.

Mas quero saber, quais são seus pet peeves da língua portuguesa?
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5.10.09

Há 33 anos

Nasci na madrugada do dia 5 de outubro de 1976, no hospital Pró-Matre, centro do Rio. O parto (cesariana) não foi feito pelo médico que acompanhou toda a gestação, um bom amigo da minha mãe (que foi, inclusive, meu primeiro ginecologista), porque a mulher dele se matara pouco tempo antes, e ele estava afastado. Nasci com peso e tamanho normais, mas com o nariz amassado. Parece que fiquei com o rosto imprensado, dentro da barriga da minha mãe, e o nariz ficou torto para um lado. Imagino a cara de decepção dos amigos e parentes na maternidade -- e, por que não?, de meus pais também -- ao ver aquele bebezinho de nariz torto. Conforme as horas passavam e o nariz não endireitava, a apreensão foi crescendo. Minha mãe pensava: "Meu Deus, será que vou passar a vida inteira olhando para esse narizinho torto?". No dia seguinte minha avó materna mandou buscar um cirurgião plástico bam-bam-bam para olhar o caso e ver o que poderia ser feito. Pelo que me contaram, ele chegou, olhou para mim durante alguns segundos, murmurou algo sobre "perda de tempo" e foi embora com cara de poucos amigos. E de fato, pouco tempo depois meu nariz desentortou naturalmente.
Meus pais passaram o final da gravidez numa casa alugada na ilha de Paquetá. Para quem não conhece, Paquetá fica na baía de Guanabara, e é conhecida como "ilha dos amores". O único acesso é de barco, e há um serviço de barcas com vários horários diários. Uma das particularidades de Paquetá é que lá não há carros, a não ser ambulâncias. Todo o transporte é, até hoje, feito de bicicleta ou charrete. Esse lugar bucólico foi meu primeiro lar. A ideia de morar em Paquetá só pode ter sido do meu pai. Paquetá era um destino frequente nos fins de semana da infância dele, com meus avós e minha tia. Tinha praia de baía (sem ondas), era calmo e agradável. Um hit suburbano, e minha família paterna era tipicamente suburbana. Duvido que minha mãe, nascida e criada no Leblon, a uma quadra da praia, tenha sido a autora da ideia.
Mesmo para os padrões dos anos 70, ir morar em Paquetá com um recém-nascido era uma ideia pra lá de alternativa. Mas meus pais estavam vindos de uma temporada morando em Boston, e achando o Rio de Janeiro muito confuso, sujo e barulhento. Minha mãe morava em Boston desde 72, e tinha se formado recentemente numa faculdade lá. Meu pai foi para lá atrás dela, e nunca soube direito o que ele fazia nos EUA. Pequenos trabalhos, eu acho. Sei que passava a maior parte do tempo na biblioteca pública, lendo e escrevendo. Sei também que voltou para o Brasil antes dela. Quem também morava em Boston na época era minha madrinha, estudante de fotografia. Por isso há tantas fotos lindas da minha mãe naquela época, tocando em casas noturnas, na faculdade, pelas ruas. A cobaia de uma fotógrafa talentosa. É também por meio dessas fotos que sei que meu pai tinha cabelo comprido e uma barba escura e espessa. Todos eram magros, jovens, belos e macrobióticos. O movimento hippie acontecia mesmo por ali.
Quando minha mãe se descobriu grávida, resolveu que era hora de voltar para o Brasil. Ela e minha madrinha arranjaram carona num cargueiro, um favor do comandante do navio ao pai da minha madrinha -- sempre essas altas conexões. Trouxeram toda a bagagem de anos morando nos EUA nesse navio. Mais de 20 volumes, inclusive duas bicicletas e um par de caixas de som de mais ou menos 1,20m de altura por uns 70cm de largura, que minha mãe tem até hoje em casa. A família foi esperar no porto. Um dos meus tios trabalhava na época com transportes de máquinas industrias, então providenciou um caminhão de 20 eixos para levar a mudança das duas. (Um caminhão para carregar retorescavadeiras e betoneiras, obviamente um exagero completo.)
A vida em Paquetá não foi fácil, e não durou muito. Quando eu contava cinco meses, mudamos para o Rio. Meu avô pediu de volta um apartamento alugado no Leblon, onde minha tia havia morado muitos anos antes, com a família. Cooptaram a empregada da vizinha da minha avó, uma moça de 17 anos chegada havia pouco do Ceará, que adorava crianças. Ela foi trabalhar na casa da minha mãe, onde continua até hoje. É minha segunda mãe, minha irmã mais velha, e a pessoa a quem eu confiaria minha filha, em caso de necessidade.
Fomos morar no Leblon, então. Que, na época, não era o metro quadrado mais caro do Rio de Janeiro, e nem o cenário das novelas do Manoel Carlos. Ganhamos uma máquina de lavar, para minhas fraldas de pano. Depois que cresci mais um pouco, minha babá cearense me levava à praia todo dia de manhã cedo, e à pracinha na parte da tarde. A casa era mobiliada basicamente por doações de parentes. Lembro bem de um sofá de jardim (de ferro) que ficava na sala. Pelas fotos, vejo a mesinha do telefone (o único da casa, com um fio comprido para chegar nos quartos), três tijolos de cada lado, com uma tábua em cima. Meu pai morou pouco tempo conosco. Não tenho lembranças dessa época. Antes dos meus dois anos ele já vivia em sua própria casa, em Copacabana. Ele minha mãe continuaram se dando muito bem, de modo que não tenho memórias traumáticas de separação.

(Continua)
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