12.2.08

A canção infantil em debate (II)

Uma breve análise sobre o cancioneiro que embala nossas crianças

Estudo de caso: O Cravo Brigou com a Rosa

O Cravo brigou com a Rosa
Debaixo de uma sacada
O Cravo ficou ferido
E a Rosa despedaçada

O Cravo ficou doente
A Rosa foi visitar
O Cravo teve um desmaio
A Rosa pôs-se a chorar

Um verdadeiro desafio interpretativo!
Podemos inferir que se trata de uma briga de casal, mas não apenas uma discussão conjugal, e sim uma disputa física envolvendo violência. Por que isso deve ser cantado às crianças permanece carente de explicação. Depois culpam os videogames!
A localização espacial "debaixo de uma sacada" não ajuda em nada a compreensão da trama. Qual a relevância desta informação, que não volta a aparecer em nenhum momento posterior? Por que eles estariam debaixo de uma sacada? Estariam eles plantados em um jardim sob a sacada? Protegiam-se de condições climáticas adversas? Escondiam-se? De quê? De quem? Teriam o Cravo e a Rosa um amor proibido? Seria uma referência à famosa "cena do balcão" de Romeu & Julieta? São muitas as perguntas sem resposta...
Na segunda estrofe ficamos sabendo das conseqüências da briga. O Cravo decerto apresentou seqüelas depois da briga, e apresenta-se "doente" (sem maiores detalhes). Já para a Rosa a única conseqüência foi a culpa pelo que fez. Na tentativa de expiá-la, vai fazer uma visita que se revela quase fatal para o Cravo, que, acometido de forte emoção, desmaia, provocando uma crise de remorso na Rosa.
E mais não sabemos, e a situação fica nesse pé, completamente mal resolvida.

A melodia ternária e anacrústica tem o mesmo padrão rítmico repetido em todas as frases, dando a impressão de círculo, o que nos remete a uma ciranda. É provável que tenha origem portuguesa, o que condiz ainda com expressões de caráter luso, tais como "teve um desmaio", "pôs-se a chorar", ou ainda a presença da sacada (localizar-se-ia a ação numa quinta, talvez?). E, claro, explicaria o completo ausência de sentido desta letra.

10 comentários:

Anônimo disse...

Essa música é completamente machista! Dá pra ver que o Cravo ficou apenas levemente ferido, enquanto a Rosa ("despedaçada") teve problemas muito mais sérios.

E mesmo assim é ela que se sente culpada. "Perdoa-me por me espancares"! É absurdo que isso seja ensinado às nossas crianças...

. disse...

É quase alencariana a última estrofe, imagino a Rosa vestida com um daqueles trajes farfalhantes, sentada na ponta de um canapé, em prantos, e o Cravo seriamente acamado, pijamas, robe de chambre, criada trazendo unguentos, linimentos, chás....
hehehe..
vem cá, vc faz essas análises do cancioneiro durante amamentação? Pergunto porque, como o Alê mamava o tempo todo eu ficava com a cabeça nas nuvens (exceto em momentos de sono mais forte)...
Beijo!

anna v. disse...

Marcus, hmm, interessante a sua leitura. Temos, de fato, um elemento rodriguiano nessa trama. Onde está o juizado de menores?!
Deh, hahahaha, eu também tenho uma imagem parecida na cabeça. As análises me vêm à mente quando fico horas e horas repetindo a mesma música, tipo um mantra, e balançando o carrinho para ela dormir.

Anônimo disse...

Anna,

E o que dizer de "Atirei um pau no gato"? Um narrador espantado com o gato que não morre quando o pau lhe atinge (e morreria por quê? Varetas de metal cravadas na madeira?), e uma muito estranha Dona Chica que se admira porque o gato berra...! Esperava o quê, um ronronar de agradecimento?

Abraços,
Luis

Anônimo disse...

Ai, Anna, adorei esses estudos de caso! O nosso cancioneiro infantil dá mesmo muito pano para manga...
O que dizer da Ciranda Cirandinha com aquela estrofe material girl "(...) o anel que tu me deste era vidro e se quebrou, o amor que tu me tinhas era pouco e se acabou". Ou daquele baluarte da luta de classes "Eu sou pobre, pobre, pobre (...) Eu sou rica, rica (...), em que a desfavorecida tem que dar as filhas para a abastada, credo!
Fora aquela melancolia toda portuguesa, aquele apreço pelo sofrimento e pela tragédia que a gente encontra em coisas inocentes como "Nesta rua, nesta rua tem um bosque, que se chama, que se chama solidão, dentro dele, dentro dele, mora um anjo, que roubou, que roubou meu coração" ou "Há três noites que eu não durmo, ô Lalá, pois perdi o meu galinho, ô Lalá, pobrezinho, ô Lalá, coitadinho, ô Lalá, (...)" ou em outra pérola que embalou a minha infância, num disco em que o palhaço Carequinha (você lebra dele?) e um grupo de crianças cantavam musiquinhas de roda, e que era algo como "Morreu meu marido coberto de flor, acabou-se a alegria, acabou-se o amor (...) sou uma pobre viúva, triste coitada de mim, ai de mim, ai de mim".
Ainda bem que a Mathilde gosta é da Joyce!!!
Um abraço,
Cláudia

anna v. disse...

Luis e Claudia, calma que a série está só começando... Mas a idéia é essa! Cláudia, não conheço essa do marido que morreu, não. Que trevas!

Anônimo disse...

Graças aos anjos e arcanjos, como contraponto, faz parte de nosso cancioneiro a riquíssima coleção Palavra Cantada, de Paulo Tatit e Sandra Perez. O CD "Canções de Ninar" já embala Mathilde, Anna?

Abs,

Luis

anna v. disse...

Ainda não, Luis... Mas sei que é excelente.

Anônimo disse...

Mas que falta do que fazer ficar analisando cantigas de roda, hein. Tão precisando de um tanque de roupa pra lavar.

Unknown disse...

Cala a boca Mem a cantiga tbm mostra que mulheres são mais sensíveis que homens