28.2.11

A incrível viagem de Shackleton, de Alfred Lansing


A graça de um bom livro de não-ficção é que, quando ele é mesmo bom, você se agarra à história como se pudesse houver alguma surpresa no desfecho - quando na verdade você já sabe perfeitamente bem o que vai acontecer, afinal a história é real e conhecida.

Grandes relatos e reportagens sobre eventos extraordinários são um dos meus gêneros favoritos de leitura. Enquanto leio, fico obcecada pelo assunto, falando a respeito com todo mundo, sem parar (Marido sofre...), pesquisando na internet etc. Foi assim com A longa viagem da biblioteca dos reis, da Lilia Schwarcz, sobre a vinda da biblioteca real portuguesa para o Brasil em 1808/9, dando origem ao que hoje é a Biblioteca Nacional. Foi assim com os meus livros favoritos sobre a Segunda Guerra, Stalingrado do Anthony Beevor, e Cinco dias em Londres, do John Lukacs. Foi assim com No coração do mar, de Nathaniel Philbrick, a história real que deu origem a Moby Dick (sobre um baleeiro atacado por uma imensa baleia louca, que foi a pique deixando a tripulação no meio do nada no Pacífico, na década de 1820, em botes salva-vidas).

O último dessa coleção foi o excelente A incrível viagem de Shackleton, de Alfred Lansing, publicado originalmente em 1959. Posso garantir que o subtítulo, A mais extraordinária aventura de todos os tempos, não é exagero. A história é mesmo impressionante, mas Lansing tem o imenso mérito de transformá-la num verdadeiro "page-turner", levando a reportagem ao estado de arte.

Sem medo de spoilers, porque afinal a história é real, a quarta capa do livro nos conta:
No verão de 1914, Sir Ernest Shackleton parte a bordo do Endurance em direção ao Atlântico Sul. O objetivo de sua expedição era cruzar o continente antártico, passando pelo Polo Sul. Mas, a apenas um dia do ponto de desembarque planejado, o Endurance fica aprisionado num banco de gelo no mar de Weddell e acaba sendo destruído.
Por quase seis meses, Shackleton e sua tripulação sobrevivem em placas de gelo em uma das mais inóspitas regiões do mundo, até que conseguem iniciar sua tentativa de retorno à civilização nos botes salva-vidas.
Através dos diários e entrevistas com alguns membros da tripulação, Alfred Lansing reconstrói as dificuldades que a tripulação do Endurance enfrentou. Em uma narrativa fascinante, Lansing descreve como Shackleton conseguiu que, após quase dois anos do início da viagem, todos retornassem com vida.

Está aí contado o início e o final da história: Shackleton e sua trupe viajam para a Antártica, tudo dá errado, mas no fim todos sobrevivem. Mas entre o início e o final... quanta coisa incrível acontece. E aí entra o talento de narrador de Lansing. A primeira frase já te prende de forma irremediável: "A ordem de abandonar o navio foi dada às cinco da tarde".

O Endurance preso no gelo

O Endurance era um super navio, fabricado especialmente para enfrentar os mares polares, todo reforçado para suportar a pressão do gelo etc. E no entanto, naquele inverno especialmente rigoroso, nada disso foi suficiente. O navio ficou preso no gelo, e aos poucos as imensas placas de gelo passaram a pressionar o casco contra o continente antártico. Foi uma morte lenta, a do Endurance. A tripulação começou a ouvir os estalos, mais e mais frequentes, até que as vigas começaram a abaular.

O barulho no interior do navio era indescritível. O compartimento meio vazio funcionava como uma gigantesca câmara de ressonância, amplificando cada estalido de tábua e o som de cada viga que se partia. Estavam apenas a poucos metros de distância dos costados do navio e podia ouvir os golpes que o gelo assestava contra o lado externo do casco, tentando abrir caminho à força.

Passaram nove meses entre o dia em que o navio ficou preso e o dia em que efetivamente afundou e foi engolido pelo gelo. A situação era ridiculamente dramática: abandonar o navio no meio do gelo, pegar todas as provisões possíveis, os botes salva-vidas, os trenós e os cachorros que os puxavam. Não tinham rádio nem qualquer espécie de comunicação. Levantaram acampamento numa imensa banquisa de gelo, e lá ficaram durante cinco meses, inclusive durante o inverno, quando não há luz do sol.

Shackleton, o cara

Depois de muito tempo, já experts em caçar focas e pinguins para comer, Shackleton e seus 27 subordinados concluíram que era preciso tentar sair dali de alguma forma. E começam uma longa caminhada, pelo gelo e neve, puxando barcos e provisões. Os cachorros foram sacrificados, porque a comida escasseou e não era mais possível alimentá-los.

Havia poucas razões para otimismo. A temperatura permanecia em torno do ponto de congelamento, de modo que durante o dia a superfície das banquisas se transformava num verdadeiro lodaçal. Eram obrigados a andar enfiando as pernas até os joelhos na mistura de água com neve e gelo, e muitas vezes os homens afundavam até a cintura num buraco invisível. Assim, suas roupas estavam permanentemente encharcadas, e seu único consolo era enfiar-se na umidade comparativamente suportável de seus sacos de dormir a cada noite.

Há passagens inacreditáveis, com as banquisas de gelo diminuindo de tamanho, se partindo, as pessoas caindo de repente na água gelada e sendo resgatadas pelos companheiros, e o vento inclemente, que parecia soprar sempre na direção contrária à desejada.

Acampamento precário numa banquisa

O vento aliás é personagem fundamental dessa história, pois era ele que decidia para que lado iam as placas de gelo onde estavam os 28 desventurados. A certa altura as placas de gelo se tornam impraticáveis, e eles precisam abandonar boa parte da bagagem, embarcar nos três pequenos botes salva-vidas e rumar para a ilha mais próxima.

O curso que seguiam ficava bem de frente para a direção em que as vagas se deslocavam e em poucos minutos estavam subindo uma montanha de água com uma encosta de quase um quilômetro de comprimento. Quando chegaram ao cume, o vento uivava, soprando a espuma em franjas delgadas e finíssimas. Depois começaram a descer, uma descida lenta mas íngreme, rumo ao vale que os levaria até a próxima onda. O ciclo se repetiu vezes sem conta. (...)
Era como se tivessem emergido subitamente em pleno infinito. Tinham o oceano à sua volta, uma vastidão hostil e deserta.

Em parte por perícia, em parte por sorte, depois de uma viagem de alguns dias num mar impossível, conseguem todos chegar à ilha Elephant, um lugar totalmente inóspito onde nenhum homem jamais havia pisado até então. Lá novamente levantam acampamento, e depois de alguns dias, Shackleton decide partir, no maior dos botes, com outros 5 tripulantes, para tentar chegar à ilha Geórgia do Sul, estação baleeira e último posto onde o Endurance havia atracado antes de sua viagem final. Os outros 22 (incluindo um marinheiro que teve um ataque cardíaco quando desembarcou, e outro cujo pé gangrenou) ficam na ilha Elephant, numa cabana precária,
improvisada com os outros dois barquinhos emborcados, comendo carne de foca e bebendo água de degelo. Nesse grupo estão dois médicos, um fotógrafo, um geólogo, um físico e outros marinheiros.

Outros destinos, como o Cabo Horn, na Patagônia, ou as ilhas Malvinas, eram mais próximos da ilha Elephant. Mas o vento, mais uma vez ele, soprava sempre para o leste, e por isso escolheram a Geórgia do Sul como destino. Essa viagem, da ilha Elephant até a Geórgia do Sul, é um drama só. São 16 dias no mar mais inóspito do planeta, enfrentando ventos, nevascas, baleias, e praticamente sem comida.

Quando finalmente conseguem desembarcar em segurança na ilha, estão no lado oposto de onde havia civilização. E aí, por incrível que pareça, Shackleton decide que 3 homens ficarão com o
barco na praia onde desembarcaram, e ele e mais 2 atravessarão a ilha. A pé.

Sei que estou me repetindo e já usei as palavras inacreditável e incrível mais vezes do que seria razoável para um texto só, mas não tem como ser diferente. Basta olhar para a foto abaixo, que mostra a paisagem da Geórgia do Sul.

Agora, como deve ter sido subir e descer essas montanhas de neve, sem equipamento de alpinismo, sem mapa, com comida para um par de dias, sabendo que 28 vidas dependem do seu sucesso na empreitada? A parada é tão sinistra que, nas últimas décadas, muitas equipes tentaram refazer a travessia da Geórgia do Sul, e poucos conseguiram (mas com equipamento, comida, GPS etc.). Um exemplo neste site.

O momento em que finalmente chegam à pequena estação baleeira é arrepiante. Três homens imundos e barbados vão bater à porta do chefe da estação.

Quando viu os três homens, deu um passo atrás e uma expressão de incredulidade tomou seu rosto. Passou um longo momento chocado e calado, antes de conseguir falar.
-- Mas quem diabos são vocês? -- disse afinal.
O homem do centro deu um passo à frente.
-- Meu nome é Shackleton -- respondeu em voz baixa.
Novamente fez-se silêncio. Há quem diga que Sorlle virou o rosto e chorou.
Ninguém podia acreditar naquilo. Fazia um ano e meio que o Endurance tinha zarpado dali para sua expedição antártica -- e desde então ninguém nunca mais tinha ouvido falar deles.

Quatro veteranos comandantes noruegueses, de cabelos brancos, se adiantaram. Seu porta-voz, falando norueguês, traduzido por Sorlle, disse que navegavam pelo Atlântico havia 40 anos e que queriam apertar as mãos dos homens que conseguiram trazer um barco aberto de 22 pés da ilha Elephant até a Geórgia do Sul, através da passagem de Drake.
Depois, todos os homens que se encontravam na sala se levantaram, e os quatro velhos comandantes apertaram as mãos de Shackleton, Worsley e Crean, cumprimentando-os pelo que haviam feito.
Mas calma, o perrengue ainda não acabou. Shackleton consegue rapidamente um rebocador para dar a volta à ilha e pegar os 3 companheiros que haviam ficado no lado não habitado da Geórgia do Sul. O problema era voltar para pegar os 22 que ficaram na ilha Elephant. Foram mais de três meses tentando chegar lá, mas o banco de gelo que cercava a ilha parecia determinado a não deixar ninguém passar. Um desesperado Shackleton implorava aos governos do Chile e do Uruguai navios maiores que pudessem vencer o gelo, mas a cada tentativa as embarcações voltavam avariadas. Finalmente em 30 de agosto de 1916, quatro meses depois que Shackleton partiu da ilha Elephant em busca de ajuda, os náufragos -- que até então não sabiam sequer se Shackleton tinha sobrevivido ao primeiro dia no mar -- foram resgatados.

A história da expedição malograda de Shackleton é bastante conhecida. Parece que o Amir Klink é um dos que falam muito dele em seus livros, que eu desgraçadamente nunca li. Mais do que um bom homem do mar, Shackleton é considerado um exemplo de liderança, por ter conseguido manter elevado o moral dos tripulantes do Endurance durante muito tempo. De fato, pelos diários que servem de fonte a este livro, as pessoas demoraram muito, mas muito mesmo, para se dar conta de que estavam numa situação absolutamente desfavorável. Que sua chance de sobrevivência era irrisória. Tudo isso graças à impressão de tranquilidade e normalidade que o Shackleton passava a todos.

A incrível viagem de Shackleton é um livraço de aventura. Só lamento que a edição brasileira não traga as fotos da expedição, que, pasmem, foram preservadas. Mas elas podem ser vistas neste site, por exemplo. O fotógrafo e membro da expedição era Frank Hurley.

9 comentários:

Milton Ribeiro disse...

Esse livro é realmente SENSACIONAL!

Isabella Kantek disse...

Que leitura emocionante, Ana!

Um livro de não-ficção que me marcou profundamente e me deixou em estado de suspensão por dias foi o Enterro Celestial de Xinran, famosa pelo seu livro As boas mulheres da China. O livro narra a história/aventura de Shu Wen, uma jovem de Nanquim que, durante trinta anos (momento queixo caído) procurou pelo marido dado como desaparecido em terras tibetanas. A sua jornada é tão detalhada e intensa que me fazia pensar que eu estava lendo um romance, como você fala no começo. Também gosto de livros assim e fico como você, falando sem parar e querendo convencer a todos da leitura.

Leandro disse...

Já li. Todos os que eu conheço que leram também gostaram. E eu ainda encontro gente que nem sabe quem ele é, o que fez... Pode?

anna v. disse...

Milton, é mesmo, com caixa alta e tudo.
Isabella, não li os livros dessa autora, mas vou colocar na minha lista de desejos...
Leandro, eu mesma não sabia muito bem antes de ler o livro. Tsk tsk.

Helê disse...

Anna, eu tenho "Endurance, A lendária expedição de Shackleton à Antártida", de Caroline Aelxander, com as fotos de Frank Hurley. Vamos promover um troca-troca, digo, um empresta-empresta. :-)
E eu fui apresentada o Shackleton, Amundsen, Scott, esse bonde todo pelo Amyr.

anna v. disse...

Helê: vamos! vamos!

devorador de letras disse...

Boa noite,

Acabei de resenhar esse livro e quero colocar esse link do site que consta as imagens e irei mecionar o seu blog, tudo bem....parabéns pelo seu blog e parabéns pela sua excelente resenha.
Segue o link do meu blog se quiser conhecer e sehuir ficarei feliz, estou seguindo aqui....abçs.


http://devoradordeletras.blogspot.com.br/



Andrea Brunetto disse...

Anna, acabei de ler esse livro e adorei. Sua resenha dele está excelente. Digitei o nome do livro no google para capturar algumas imagens, da capa do livro e do navio, e apareceu sua matéria. Que coisa boa! Obrigada

Renato disse...

Leitura maravilhosa. Li há uns dois anos. Mas estou ouvindo um episódio do podcast escriba café sobre a expedição e vim pesquisar na internet mais coisas sobre o autor.