22.2.07

No século passado

Sigo em marcha lenta minha maratona Seinfeld. Hoje dei um sprint, vi vários episódios. Engraçado reparar como várias das tramas são baseadas em problemas de comunicação. Alguém tem que falar com outrem, mas não consegue, então tudo dá errado. E nessa hora o seriado fica mesmo datado, porque na época em que foi feito (1989-1998) não havia celulares. E a verdade é que a gente não lembra mais como fazíamos quando não havia celular.

Vamos puxar pela memória: marcávamos uma combinação qualquer (tipo: vamos nos encontrar em tal lugar a tal hora), e depois que saiu de casa, acabou, no turning back. Lembrou? As pessoas ficavam simplesmente inacessíveis na rua. Várias combinações davam errado. Muito desencontro nessa vida. (Tem um filme do Woody Allen, não lembro qual, em que um dos personagens -- talvez o do Alan Alda, também não lembro, fosfosol pra pessoa aqui! -- passa o filme inteiro ligando para a própria secretária, no escritório, para dar o número do telefone de onde ele está naquele momento, para o caso de alguém ligar. E ele vai de casa em casa, e toda hora liga para atualizar o número. E ninguém nunca liga pra ele, e essa é uma das piadas do filme. E hoje em dia é uma curiosidade antropológica, quase.)

O celular mudou a vida das pessoas em muitas coisas. Minha amiga S. diz que pode escrever um livro só sobre a mudança que o celular operou na esfera dos relacionamentos. A começar pelo bina. (Ih, é esse cara? Nem vou atender.) E a terminar pela paranóia de um carinha que vc mal conhece poder estar te filmando, digamos, em momentos íntimos, para depois postar no YouTube.

Tem outra mudança de que me dei conta. Que é o seguinte. Antes do celular, você tinha muito mais contato com a vida familiar dos seus amigos. Exemplo. Início dos anos 90, eu era adolescente e morava com a minha mãe. Assim como todos os meus amigos. Não tinha e-mail. Então tudo era combinado pelo telefone. O fixo. A gente ligava, e às vezes atendia a mãe da pessoa, às vezes o pai, ou a/o irmã/o, ou a empregada. E se fosse alguém para quem você ligasse muito, acabava estabelecendo uma relação com toda essa família. Porque às vezes era preciso deixar recados extensos e importantíssimos com quem quer que estivesse em casa (tipo: bom, se ele ligar, diga que eu não pude esperar no lugar X, mas estarei no lugar Y até tal hora, depois vou para Z). Então se você tivesse, digamos, um ex-namorado psycho que te ligasse o tempo todo, ele pelo menos estaria exposto ao vexame de posar de psycho para todo mundo da sua casa. Eu conheço razoavelmente bem os pais e os irmãos dos meus amigos mais antigos. Hoje em dia não. Crianças têm celulares desde os dez anos, e passam o dia mandando SMS umas para as outras. Ou e-mails. Ou scraps. Ou comentários nos blogs.

Os relacionamentos -- quaisquer que sejam, amizades ou namoros -- passaram a se dar numa esfera muito mais privada (ou muito mais pública, no caso dos scraps e dos blogs, mas de qualquer forma, sem passar pela mediação da esfera doméstica, apenas pela mediação dos pares).

Lembro que a minha mãe sempre teve em casa um caderno de telefones gigantesco, e que muitas das "entradas" eram coisas como "Fulano - casa", "Fulano - mãe", "Fulano - trabalho", "Fulano - namorada" -- todos os números que Fulano "freqüentava", por assim dizer.

Hoje em dia eu praticamente só tenho o celular das pessoas. De muitos bons amigos, nem tenho o fixo. Mas vou contar para os meus filhos e netos que passei por toda a escola, incluindo vestibular, sem computador (internet nem fale), e toda a faculdade sem celular. Eles vão me ouvir, claro, com a mesma mistura de simpatia, curiosidade e uma certa pena com que eu sempre ouvi minha avó (ou mesmo meus pais) dizendo que para se fazer um interurbano você chamava a telefonista e a coisa demorava uma tarde inteira pra conseguir uma linha. Ou então aquela história que a TV só tinha programação durante poucas horas, e que nos horários em que não tinha nada ficava a imagem de um índio congelada na TV Tupi.

Tudo isso é, vá lá, normal. Mas a questão é mesmo o tempo. Como essas tecnologias deixam de ser nada e passam a ser tudo em menos de dez anos.
Tenho a impressão que este post já nasceu anacrônico.

5 comentários:

Anônimo disse...

Eu sempre penso nisso. Como o mundo, realmente, MUDOU durante o nosso tempo de vida. E as relações sociais acompanharam, claro.
Acredito até em uma mudança na forma como as conexões neuronais se deram nessa nova geração (muito estímulo audio-visual etc e tal) e em quão diferentes de nós eles são (toda essa história de hiperatividade para mim é isso).
Multi-task, nossos filhos.
Bjs

Anônimo disse...

sem contar que agora a gente não decora mais os nºs de telefone, né?? tá tudo na agenda do celular. ai, um dia vc perde a porcaria e fica sem memória... aconteceu comigo! um horror!

Anônimo disse...

Belíssimo texto. Você pensou em algo novo: o contato familiar que os amigos não tem mais com as "pessoas que atendem ao telefone". Comecei um namoro antigo assim, porque o rapaz atendeu ao telefone na casa do primo, que era meu amigo de escola!

Mari Santilli disse...

Nossa, Anna, esses dias mesmo eu estava pensando nisso: "como as pessoas faziam pra avisar quando se atrasavam ou simplesmente não iam a um compromisso?"... Ou seja, não avisavam, a gente só ia saber no outro dia... Quanto às relações com familiares você também falou tudo... era tão gostoso... hoje não se vê mais isso mesmo... Adorei! bjs

anna v. disse...

Daniela, cada geração já vem com vários upgrades...
Ana, este ano voltei a fazer algo que não fazia há tempos: passei os telefones para a agenda de 2007 (de papel). Porque um dia tinha marcado de encontrar um amigo, e esqueci o celular, e me dei conta que não sei mais nenhum telefone de cor. Refém do celular, que horror.
Eva, que história interessante essa sua. Menos uma possibilidade, agora.
Mariângela, pois é, a quantidade de problema que isso gerava era incrível. Se com celular a gente se complica tanto, imagina sem.