15.2.11

A última geração epistolar

Coisa de algumas semanas atrás, minha mãe me ligou e pediu que eu fosse à casa dela para dar um destino a umas tralhas minhas que ainda estavam por lá. Ela fez obra, pintou o apartamento, e aproveitou para dar aquela limpa. Então lá fui eu, num clima bem pouco emotivo, mandando tudo pro lixo, exceto diários, cartas e fotos. De resto, foi tudo embora: anos e anos de programas de shows e concertos aos quais assisti, cadernos e apostilas de francês e alemão, muitos blocos de apuração da época em que eu escrevia matérias e reportagens, minha coleção de borrachas cheirosas, minha coleção de bottons, mapas de dezenas de cidade da Europa, brochuras de museus que visitei em outros países, todos os textos da faculdade (Platão, Deleuze, Kristeva, Jakobson, Saussure, Barthes et alii) viraram rascunho, pastas e fichários, pranchetas e estojos, até a placa da minha antiga scooter ainda vivia por lá.
Mas, claro, ninguém é de ferro, e alguma memorabilia inútil sobreviveu: meus boletins e cadernetas de colégio, um "Livro de Bamba" com dezenas de letras de samba que meu compadre P. fez para mim em priscas eras, e uma caixa com minha coleção de papéis de carta.
Não sei se isso ainda existe hoje em algum lugar desse vasto mundo. Mas na minha época as meninas todas colecionavam papel de carta. Vendia na papelaria, com os desenhos e decorações mais variados. As mais maníacas, como eu, guardavam seus exemplares em pastas com folhas de plástico, e trocávamos muito, porque em geral comprava-se uma caixa com vários exemplares. Quando alguém trazia papel de carta do exterior era uma glória, eles ficavam muito valiosos -- dava pra trocar um importado por vários nacionais. Enfim, era todo um mercado, com variáveis que ditavam o valor de face de cada um.
Lembro-me que quando mostrava minha coleção a algum adulto, invariavelmente vinha a pergunta: mas você não vai escrever nenhuma carta nesses papéis tão bonitos? Eu revirava os olhos diante de tanta incompreensão. Como alguém podia cogitar usar aqueles papéis?
Enfim, o tempo passou e eles continuam lá, agora guardados nessa caixa que salvei da tsunami da arrumação da mamãe. Quero usá-los, é claro, mas não é tão fácil encontrar destinatários para cartas, esses dias. Mais difícil ainda é escrever uma carta a mão, em papel. Não só a mão dói como é um sufoco não poder editar o texto depois.
E aí fiquei pensando que a minha geração (os nascidos na década de 1970) foi provavelmente a última geração epistolar. Fomos os últimos a experimentar o frisson de uma carta que chega em seu nome; os últimos a sentar para escrever uma carta e fazer apenas isso (sem checar emails, sem navegar, sem ler notícias de último momento); os últimos a levar aquela carta manuscrita em folhas de caderno (frente e verso) para um lugar onde ninguém mais nos atrapalhasse, para ler em paz; os últimos a ter selos em casa (eu ainda tenho alguns); os últimos a achar normal uma carta levar de uma a duas semanas para chegar de um país ao outro; os últimos a conhecer o papel aéreo, aquele bem fininho, para não pesar a correspondência; os últimos a ter em casa aquele envelope aéreo, também mais fino, com franjinhas verde-amarelas e a anacrônica expressão francesa impressa: "Par Avion".

Lembro-me muito bem da sensação de incredulidade quando minha mãe me disse que quando ela era criança só existia a TV Tupi e que só tinha programação algumas horas por dia -- a maior parte do tempo era a imagem estática de um índio. Pior ainda quando meu pai me disse que foi na infância dele que surgiu a caneta esferográfica -- e que revolução aquilo foi para ele. Também achava remotíssimo saber que meus pais tinham vivido na capital do Brasil, e que isso aqui se chamava estado da Guanabara.
Por tudo isso, sempre achei que seria normal haver muitas diferenças entre a minha infância/adolescência e a dos meus filhos. A primeira coisa que pensamos, em geral, é em computador, internet e celular -- como não tínhamos, e, por incrível que pareça, vivíamos nossas vidas. Sim, sempre pensei que isso seria algo que me divertiria quando tivesse que explicar aos meus filhos: que quando combinava algum programa com os amigos, tudo tinha de estar planejado e acertado antes de sair de casa, porque, uma vez na rua, não havia mais jeito de ser encontrado. E, por estranho que possa soar, as coisas funcionavam, e até bem.
Eles também vão achar curioso saber que quando eu precisava fazer uma pesquisa para a escola sobre algum assunto, ia a uma biblioteca, pegava uma enciclopédia e me punha a copiar as coisas, a mão mesmo. E quando ouvia uma música em algum lugar e gostava, às vezes tinha que rodar muitas lojas para encontrar um disco.
Tudo isso eu já sabia que seriam grandes diferenças entre a minha geração e a deles.
Mas aos poucos fui percebendo outros detalhes.
Minha filha, que tem 3 anos, assiste a seus desenhos em DVD ou no YouTube. Nós não temos nenhum sinal de TV - nem aberta, nem a cabo. Por isso, ela assiste aos mesmos desenhos inúmeras vezes, na hora que quer (mais ou menos, claro), na ordem que deseja. E se precisa ir ao banheiro, ela pede para alguém "dar um pause" (sic). Ela nem imagina que, quando eu era criança, se quisesse assistir a algum desenho, era preciso postar-se à frente da TV na hora tal. Se atrasasse, perdia, tinha de esperar até o dia seguinte. Um canal inteiro só de desenhos? Haha. Só em sonhos.
Ela também terá dificuldade para entender o alvoroço que era quando se esperava uma ligação internacional. No dia e hora combinados (em geral domingo, que era mais barato), ninguém podia nem mesmo se aproximar muito do telefone, esperando a mítica ligação. Era difícil, muitas vezes se ouvia mal, e tinha-se de falar rápido, porque custava uma fortuna. Aliás, não sei se ela vai, algum dia, dar conta de entender o conceito de uma casa com apenas um aparelho de telefone, daqueles de disco, com um fio compridíssimo, para poder chegar nos quartos. Sim, os aparelhos sem fio já existiam, mas eram enormes e pesados, com antenas gigantes, a recepção era horrorosa e ainda por cima eles davam choque. Não sei se vou conseguir explicar o macete de discar um número de telefone só dando batidinhas rápidas no lugar onde o telefone desligava -- era uma típica gambiarra do sistema de pulsos.
Fico pensando ainda se sobreviverá mais uma geração o (estranho) hábito de se escrever "hum mil". Eu até hoje escrevo assim, quando se trata de valores. Hum mil reais. Segundo me ensinaram, era uma forma de se prevenir contra fraudes. Escrever apenas "mil reais" dá margem a alguém tascar um "dez" na frente do mil. Mas pior era escrever "um mil", sem agá: um gatuno poderia, em dois tempos, transformar "um" em "cem". E o pior é que falavam de um jeito que dava um medo horrível que isso acontecesse.
Não sei se ela vai chegar a ver de perto um filme fotográfico - de 12, 24 ou 36 poses. Talvez tenha dificuldade de entender que era preciso esperar até o filme acabar, e que ninguém tirava foto à toa, porque a revelação custava caro. Entre o registro fotográfico e o momento em que se via o resultado impresso no papel passavam-se normalmente muitos e muitos dias. Sem falar que, óbvio, a foto não aparecia no lado de trás da máquina. E que ninguém, em sã consciência, tiraria mais de 100 fotos numa viagem de férias.
Tem milhões de outros detalhes. Subia-se nos ônibus pela porta de trás, e as pessoas fumavam nos ônibus, nos aviões e nos elevadores. O que ela vai conhecer como "make" eu chamo de "maquiagem", a "bike" dela será sempre minha "bicicleta", e as cores eu continuo chamando pelo nome antigo (lilás, e não lavanda; roxo, e não aubergine; gelo, e não off-white).
Eu poderia continuar listando indefinidamente essas pequenas coisas que se acumulam no abismo que separa as nossas gerações -- não fosse pelo fato de que já é meia-noite e eu preciso dormir (já contei que voltei a trabalhar? pois então.)
Mas gostaria de ouvir de vocês, quais são essas pequenas diferenças de comportamento/estilo de vida que não imaginaram que um dia teriam de explicar aos filhos?

11 comentários:

MegMarques disse...

Pensando rapidinho assim não lembro de mais nenhum que vc já não tenha falado.

Mas tem umas coisas engraçadas que minhas filhas volta e meia me perguntam: sabendo que vários aparelhos não existiam na minha infância, elas querem saber se existia elevador quando eu era pequena, ou se existia escada rolante, ou se já tinham inventado o despertador. :)

bjos

Ana Valéria disse...

sou de 69 e minha coleção de papel de carta que tb está na casa de minha mãe, foi pro lixo esse ano!
tudo o que vc falou tinha seu charme... e sinto saudades! mas vamos pra frente, né?
bj

::Fer:: disse...

Gravar fitas K7 com músicas direto do rádio (torcendo para o locutor não falar nada no começo nem no fim da música).

Marcus Pessoa disse...

Fiz uma garimpagem muito semelhante à sua em 2009, depois que a mamãe se foi e a gente arrumou o apartamento para vender. Boletins e diplomas do primário é típico, né? Não tem como se livrar deles.

Havia muitas cartas. Havia até cartas trocadas entre a mamãe e os filhos, porque às vezes ela não conseguia falar por telefone e mandava o que tinha que dizer pelo papel mesmo.

Relembrei disso tudo recentemente, na terapia ocupacional da clínica, quando tive a idéia de montar envelopes para mandar os posts que eu estava escrevendo em papel como se fossem cartas para os amigos. Eu modificava o modelo oficial, colocando grafismos e tal, mas mantinha sempre lá a expressão Par Avion.

E eu usava essa gambiarra das batidinhas no telefone quando o disco estava bloqueado por um cadeado. Era a proteção mais fácil de quebrar que eu já vi.

Uma coisa deliciosamente anacrônica, que você não citou em seu texto, era o costume de gravar coletâneas de músicas em fita cassete. Há poucos anos ouvi por acaso uma fita que dei para uma prima, nos anos 80, e foi um flashback tremendo. Porque era uma época em que a gente só ouvia a música se tinha o disco, e as músicas que ouvia por aí deixavam saudades.

Anônimo disse...

anna, eu tenho a coleção de papel de carta ate hoje, não tive coragem de dar pra sofia na epoca, vai vendo a necessidade de terapia... ela tem 14 anos, eh de uma geração anterior a matilde, chegou a ter uma fasezinha de papel de carta (uma amiga minha, se desfazendo da dela, deu, e mais alguns comprados em papelaria), mas nem chegou perto de como era em nossa epoca...

e eu ainda mando carta escrita ateh hj, para alguns amigas, mas muito raramente. e eles nunca respondem... ja tive fase de receber (e escrever mais ainda) carta todo dia! alem de mudar muito de cidade, e querer manter contato com as pessoas, minha mae fez arte-postal na dec de 70, a gente tinha o habito, pintava papel de carta, colava no envelope, escrevia pra desconhecidos(que se tornavam amigos...). nostalgia pura essa conversa!

pra completar, eu queria tanto o 2666 do bolano, agora que vi que vc vendeu, que pena... nem li o seu post para nao ficar influenciada! se o comprador nao pegar, guarda pra mim! :)

surya

liz disse...

coisa mais linda!
uma curiosidade : o nome do blog terapia zero. (?)

Gostaria de saber sobre a escolha do nome do blog.
Sou leitora recente.

anna v. disse...

Meg, que maravilhas essas suas meninas. Criança é um bicho muito engraçado mesmo.

Ana Valéria, sim, vamos em frente, é claro. A intenção não foi ser nostálgica, e sim chamar atenção de curiosidades. Mas de fato, relendo eu também achei que rolou uma certa nostalgia.

Fer, muito bem lembrado! Era isso mesmo, tinha sempre uma fita "no ponto", esperando para apertar o botão REC.

Marcus, as coletâneas em fita cassete! Nada, na geração MP3, as substituiu. Como dava trabalho gravá-las. E calcular para as músicas caberem certo num lado da fita, não cortar nem ficar sobrando... E a arte das capinhas!

Surya, o Bolaño já foi há tempos para Pernambuco. Se o leitor quiser se manifestar a respeito, dizer se gostou ou não, vou achar ótimo.

Liz, tem tanto tempo que inventei esse nome, que quase não me lembro mais... :-) O fato é que nunca fiz terapia, análise, nada do tipo, e acho que em parte devo isso a conversar muito com amigos em mesa de bar. E o blogue é uma espécie de versão virtual disso.

Anônimo disse...

No momento, só dá pra escrever isso: muito bom!
bjo,
clara

Isabella Kantek disse...

Ainda tenho todas as minhas fitas K7, inclusive a da minha primeira banda em que fiz uma capinha bem tosca de um castelo, rsss. (Quando quero guardar algo especial envio para a minha sogra). Minha mãe adora fazer faxina furacão e foi numa dessas que a minha coleção de papel de carta (incluindo europeus que a minha avo sempre lembrava de trazer) sumiu. :/
Anna, o seu levantamento super detalhado deu conta da maior parte das diferenças. E e sempre um gozo assistir a expressão de espanto dos pequenos: "o que? quando voce era pequena não tinha internet, celular, maquina digital?".

Fábio disse...

1) Tinha festinha que, na minha adolescência, se chamava Hi Fi. Rapazes levavam refrigerante, moças, salgadinhos. Homem quase nunca dançava, ficava nos cantos. Até que chegava a hora do ataque: música lenta. Com sorte e química, rolava beijo na boca. Tá, às vezes tinha mão atrevida, ou o polegar querendo alcançar um pouco do seio, assim, como quem não quer nada. As meninas quase que invariavelmente tiravam nossa mão. Mas era quase obrigatório tentar.

2) A filha de uma amiga descobriu uma máquina de datilografar na garagem. Achou o máximo. Veio contar a novidade para os adultos. "A gente escreve e já sai impresso. E não gasta tonner, mãe!".

3) Ainda existe álbum de figurinha? Joga-se "abafa" ou "bafão" no recreio com as repetidas?

4) TV preto e branco com uma tela acrílica azul (ou lilás, ou tipo arco-íris) para a imagem ficar colorida.

5) Esta fica como sugestão para tua filha, Anna. Carbono, lembra dele? Ainda existe na papelaria. "A criança desenha e vê o desenho reproduzido do outro lado. É mágico. Elas adora e custa 30 centavos", ensinou-me, não faz muito tempo, um terapeuta infantil.

Nunca havia comentado, mas gosto bastante do teu blog. Parabéns.

anna v. disse...

Fábio, quantas coisas ótimas! Essa do carbono é mesmo uma excelente ideia, vou experimentar. Obrigada e beijos.