Não sei se foi em todo o Brasil, mas alguns anos atrás, perto do dia 31 de outubro, surgiram no Rio de Janeiro diversos cartazes colados pela cidade com os dizeres "Halloween é o cacete! Viva a cultural nacional!". Eram assinados por um tal MV-Brasil, e na época fizeram sucesso, popularizando o slogan -- que até hoje é lembrado, apesar de os cartazes terem sumido.
Eu acho Halloween uma besteira, quem quiser que comemore, mas muito mais me incomoda ver por todo canto "Sale", "Delivery" e desodorante com hair minimizer ou xampu com memorizer. Eu hein. Não sou contra os estrangeirismos. Só abomino as apropriações indébitas.
Agora que tenho uma filha de quase 3 anos tem me incomodado sobremaneira o estrangeirismo nos nomes dos personagens de desenhos animados. Por terem se tornado marcas registradas, essas criações hoje precisam ter, por contrato, o mesmo nome no mundo inteiro. Já era revoltante o suficiente que existissem os Backyardigans (que noutros tempos teriam sido A Turma do Quintal sem maiores problemas) ou o High School Musical. Mas esses, enfim, já chegaram aqui com esses nomes, assim como Charlie & Lola ou nossa querida Peppa Pig. Mas agora, o que é pior, estão alterando nomes já consagrados no Brasil!
Eu deveria ter desconfiado quando o Ursinho Puff virou Pooh. Mas enfim, Puff, Pooh, é quase a mesma coisa. E o Tigrão, o Leitão, o Coelho e o Ió permaneceram inalternados. Mas só me dei conta do processo quando percebi que a boa e velha Fada Sininho do Peter Pan virou... Tinker Bell!
Tudo faz parte dessa nova, digamos, tendência de criar "coletivos" de personagens. Primeiro foram As Princesas. Elas surgiram como um grupo autônomo, apesar de Branca de Neve, Cinderela, Bela Adormecida, Ariel e Bela nunca teram habitado a mesma história, o mesmo século, ou o mesmo reino. O sucesso foi tão estrondoso que depois surgiram As Fadas. Diferente d'As Princesas, As Fadas não existiam antes em outras histórias (não é a reunião da Sininho com a Fada Madrinha da Cinderela e da Fada Azul do Pinóquio, o que seria engraçado); são todas personagens recentes, amigas da Sininho e habitantes do reino das fadas. Sem entrar no mérito de serem todas fadinhas gostosas, bem torneadas, aventureiras, inteligentes, românticas etc, o relevante aqui é que, agora que assumiu um novo status, tem sua própria turma de amigas e estrela filmes próprios, Sininho agora se chama Tinker Bell! E nos desenhos, seus amigos a chamam de Tinkie - isn't that cute?
Isso me deixa não só revoltada como desgostosa. Fora o inconveniente de ter de explicar a Mathilde que sim, aquela é a Fada Sininho, apesar de a chamarem de Tinkie (e pra confundir ainda mais, minha mãe a chama de Fada Tlin-Dlin, que era o nome brasileiro nos anos 50), fica o pesar por tanta riqueza que se está perdendo com essa estúpida padronização mundial de nomes.
Tradução de nomes de personagens ficcionais não é coisa simples nem corriqueira. Envolve muita ciência e uma boa dose de brilhantismo. Vasta literatura já foi escrita em torno dos nomes, no Brasil, dos personagens e lugares de Harry Potter ou do Senhor dos Anéis. Mas o mais triste é ver como se perde a chance de adicionar uma certa brasilidade a esses universos imaginários. Se fossem lançados hoje em dia, teríamos o Uncle Scrooge e não o Tio Patinhas. Goofy, e não Pateta. Magica De Spell em vez da genial tradução Maga Patalógica, um trocadilho sensacional com "patológica". Imagine os Beagle Boys, e não os Irmãos Metralha! Ainda no universo de Patópolis (Duckburg) há ótimas soluções de tradução: Mancha Negra (Phantom Blot), o brasileiríssimo João Bafo-de-Onça (Black Pete), Huguinho, Zezinho e Luizinho (Huey, Dewey e Louie), Peninha (Fethry Duck), Margarida (Daisy) etc.
Mas não só aos personagens Disney se resumem as boas traduções. Os Looney Tunes estão entre os meus favoritos neste quesito. A começar pelo melhor de todos: Pernalonga - no original, Bugs Bunny. Ora, Bunny = coelho e Bug é ao mesmo tempo "inseto" e o verbo perturbar, incomodar (justamente como um inseto zumbindo no ouvido). O Pernalonga é precisamente isso: um coelho que enche o saco. Daí que os tradutores decidiram abrir mão da parte do coelho (Bunny) e focar no inseto que perturba, o pernilongo, ao mesmo tempo remetendo a uma característica física do personagem, que são as pernas compridas. Absolutamente genial! Já o Porky Pig também perdeu a referência ao porco para virar apenas Gaguinho. Hortelino Troca-Letras é outro que teve o nome brasileiro completamente desvinculado do original americano (Elmer Fudd) para ser fiel a uma característica do personagem. Personagens como Frajola e Piu-Piu (Sylvester e Tweety) tiveram seus nomes trazidos para a realidade brasileira. Outros foram simplesmente adaptações inteligentes: Road Runner> Papa-Léguas; Speedy Gonzalez> Ligeirinho.
Lamento imensamente que isso não mais ocorra com os desenhos animados de hoje em dia. Acho triste que, por razões comerciais, minha filha tenha entre seus ídolos bichos chamados Tasha, Austin, Tyrone, Pablo e Uniqua (que aliás nem bicho é - acho eu). Mais triste ainda é que essa verdadeira arte da tradução dos nomes tenha caído em desuso. Saudades de Penélope Charmosa, Dick Vigarista e Rabugento.
9 comentários:
Ótimo texto. Sempre me pego pensando nisso, principalmente quando estamos no Brasil. Seria tão mais original e divertido ouvir por ai Turma do Quintal, Porquinha Peppa (ainda que seu nome fosse mantido), Fada Sininho, etc. Aqui em casa andam assistindo muito o tal Toy Story que eu nunca entendi o motivo da permanência do nome em inglês. Quer dizer, a gente até entende, mas custa a aceitar. Felizmente o Pequeno Urso foi traduzido e Os Sete Monstrinhos também (ambos ilustrados pelo grande Sendak). Já a tradução de Wonder Pets para Super Fofos me faz rir.
Muito bons texto e reflexão, anna, coloca questões importantes de modo convincente, claro, objetivo e cheio de razões, concordo que a língua deve ser forte o suficiente para suportar com galhardia as traduções do que nos chega mais velozmente, também acho que a nossa língua tem tudo para soar bela vestindo todas essas fantasias que você elenca, e não tem coisa mais fofa do que a Sininho, em suas várias versões fílmicas ::))
abraço,
clara
Engraçado, que aqui, os Backyardigans são Melodions eo os trenzinhos amiguinhos do thomas também tem nomes daqui... Mas eu absurdo também essa estoria dos nomes derem todos iguais... Me lembro da minha indignação quando bizonho virou Ió...
Eternamente grata pelas explicações dadas no post. Igualmente inconformada.
Ciça
Sei que o texto é antigo e talvez o comentário passe despercebido, mas eu era criança na época do Puff e me recuso a chamar o Bisonho de Ió.
Desapercebido nada. Mas eu acho que não curtia tanto o Ursinho quando criança, de modo que não percebi a mudança de Bisonho para Ió.
Bisonho virou Ió e o Coelho antes era Abel. E assim continuam, ao menos pra mim... sinto como se essa parte da minha infância fosse esquecida com o passar do tempo!
Infelizmente tenho que dizer que isso é "macaquismo" de Brasileiro que tem desespero pra imitar americano.
Sininho continua inalterada em portugal, Clochette na frança, Campanelino na Italia, Campanilla em espanhol, etc...
So no Brasil que tem essa palhaçada de Tinkerbel.
Sempre falei Sininho e continuarei rsrsrs.Seu texto é muito bom.
Postar um comentário