4.11.12

Uma vida em rascunhos

Bem cedo aprendi a ter muito amor pelo objeto papel. Meu pai e minha mãe jamais permitiram que se jogasse fora uma folha de papel que não fosse usada em ambos os lados. E aquela clássica cena de cinema em que um personagem começa a escrever uma carta (ou um livro), e depois de uma frase amassa o papel para jogar fora até hoje me provoca calafrios. Papel tem de ser usado em sua totalidade. Por isso, ao longo de muitas faxinas em casa, acumulei quantidades absurdas de papel de rascunho, por falta de coragem de jogar fora. Era tanto papel que eu achava que nem em duas vidas inteiras teria oportunidade de usar.

Até que meus filhos aprenderam a rabiscar, desenhar, escrever. É impressionante como eles amam essa atividade - e mais impressionante ainda o quanto gastam de papel para todos os seus desenhos e rabiscos.

Hoje, fazendo uma arrumação na casa, peguei quilos de papel usado por eles, desenhos deixados pelos cantos da casa, e fui separando o que já estava rabiscado (para o lixo) e o que ainda não estava (para recolocar no lugar). E nessa lida passei minha vida em revista observando o que estava no verso dos desenhos.

Tinha ali o Discurso do Método de Descartes, textos clássicos da Escola de Frankfurt, como Adorno sobre a indústria cultural e A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica de Benjamin (com comentários meus na margem da página!), partituras quatro vozes de uma Aleluia e de motetos medievais, prestações de contas de projetos de Lei Rouanet, boletos bancários, cópias xerox de um capítulo intitulado Psychoanalisys and Feminism, páginas em formato A3 (mais valorizadas!) de um livro ilustrado sobre carros.

Vai que eles estão absorvendo um pouco disso tudo. Nunca se sabe.

30.10.12

Oliver 2.0

Meu pequeno, 2 anos hoje.




24.10.12

Berries



Ainda sobre Frankfurt: além da maravilhosa cerveja, desfrutei muito das frutas mais adoráveis dos climas temperados: amoras, framboesas e mirtilos (em inglês, o trio de berries: blackberry, raspberry and blueberry). Como meu hotel era muito phyno, o café da manhã era todo cheio de guéri-guéri. De modos que todo dia de manhã eu começava o dia com essa linda cumbuca acima: melões cantaloupe, melancia, morangos e as três berries, encimadas por um iogurte todo orgânico que vinha em pote de vidro retornável (como tudo lá) e um mel direto do favo. Chyk no último. Tão lindo que tirei essa foto, que na verdade virou um vídeo (fruto da minha incompetência iPhônica).

22.10.12

De Frankfurt


Estive em Frankfurt no início de outubro para a maior e mais tradicional feira do mercado editorial. Como percebi que nem mesmo minha mãe entende muito bem o que eu faço (minha madrinha achou que  eu voltaria da viagem com uma porção de livros na mala), e porque sei que os posts sobre mercado editorial costumam dar ibope neste abandonado espaço, eis aqui um curso relâmpago sobre a Feira de Frankfurt.

Diferente das nossas Bienais, Frankfurt é uma feira de negócios, voltada para profissionais, e não para o público. Nos diferentes halls estão os estandes das editoras e o espaço reservado aos agentes literários -- estes não têm estandes, apenas mesas para conduzir as reuniões. Mesmo nos estandes das editoras, que lembram fisicamente os estandes das nossas bienais, o espaço é ocupado por mesas para encontros, pois não há venda de livros (exceto no último fim de semana).
 

Por ser um evento tão tradicional, a agenda de encontros de Frankfurt é marcada com bastante antecedência. A feira é sempre em outubro, e já em junho começa o frenético agendamento dos encontros a cada meia hora, das 9h às 18h. Oficialmente, a feira funciona de quarta a sábado, e quatro dias de trabalho intenso já estariam de bom tamanho, mas com o crescimento do evento passou a ser praxe marcar encontros também na terça e mesmo na segunda, no lobby de um hotel tradicional no centro da cidade, o Frankfurterhof, que fica apinhado de gente e já é uma tarefa hercúlea você conseguir apenas achar a pessoa com quem marcou, que dirá negociar alguma coisa de interessante. Mas enfim, tradições.

E afinal, de que consistem esses encontros a cada meia hora? Normalmente, os editores de aquisições marcam com os agentes e editores (profissionais de "foreign rights", ou direitos estrangeiros) com quem costumam negociar, ou que porventura tenham interesse em conhecer. Grosso modo, estão ali frente a frente um vendedor de direitos de tradução de diversos títulos, e um comprador, responsável por uma editora que costuma comprar títulos estrangeiros para seu catálogo. O comprador chega e diz o que está procurando e o vendedor então sugere alguns títulos de sua lista, que serão então enviados para análise.


Mas ora, essas listas de títulos disponíveis já são mandadas previamente, e quem faz bem seu dever de casa inclusive já seleciona os títulos que lhe parecem mais interessantes (com base numa sinopse sumária) e durante o encontro já diz o que quer ver. Tudo isso é feito por e-mail, então francamente, qual a necessidade de todo esse deslocamento?

É aí que mora a arte do encontro ("apesar de haver tanto desencontro nessa vida", etc.). Porque no geral, quem trabalha no mercado de livro não foi parar ali para ficar rico. Praticamente todo mundo está ali porque gosta de ler. E naquela meia hora, a conversa pode tomar rumos maravilhosamente inesperados. Um comentário despretensioso pode gerar uma associação de ideias que leva a um negócio inusitado. Ou ainda melhor, a conversa pode migrar para o mais genérico, para o assunto "livros", independente de quem tem os direitos, e descobrem-se afinidades comuns, dicas preciosas são dadas.


Além do funcionamento nos horários comerciais, Frankfurt também se estende pela noite, com uma série de jantares e festas, algumas oficiais e já tradicionais das editoras, outras mais indie, com bandas formadas por profissionais do mercado e outras gracinhas. Ou seja, é uma semana exaustiva, mas muito produtiva, e é sensacional sair da rotina para entrar de corpo e alma no mundo dos livros. Ainda mais na Alemanha, um país tão bacana, onde se bebe uma cerveja de trigo inigualável.


Por outro lado, é bom voltar logo e tomar aquele choque de realidade, com os números ingratos do nosso mercado brasileiro (tantos títulos novos lançados por tantas editoras versus tão poucas livrarias). Com a prolongada crise da Europa, o Brasil continua sendo bola da vez, todo mundo quer vender para os editores brasileiros, e a maior competitividade só faz inflacionar os preços tremendamente. E se a gente se deixa levar demais pela agenda alheia, acaba por pagar muito e esquecer como as coisas funcionam por aqui -- e a notícia de que a Amazon pode vir a comprar a Saraiva logicamente não ajuda em nada, muito ao contrário.

E você, já foi a alguma feira de negócios em outro país? Tenho curiosidade para saber como funciona nas outras indústrias.

26.9.12

Divagações sob cera quente

Por algum motivo, sempre que estou fazendo depilação me pego filosofando sobre assuntos de relevância intercontinental e planetária. Por exemplo, sempre penso o que aconteceria se, bem naquela hora em que estou com consideráveis partes do corpo cobertas de cera pelando, disparasse um alarme de incêndio ou houvesse uma tsunami na Baía de Guanabara. Sei lá, qualquer situação de pânico que exigisse uma correria do tipo run for your life. Será que a depiladora arrancaria a cera de qualquer jeito, ou eu teria que sair correndo com a cera grudada? Que droga, hein.

Ou então penso que tortuosos caminhos da estética feminina e da busca pelo belo ideal nos levaram a passar cera quente milímetros acima dos olhos para ter sobrancelhas meticulosamente aparadas, modeladas e "perfeitas". Mais grave ainda: como chegamos ao ponto de ficar incomodadas se as sobrancelhas não estiverem em ordem, ou se o esmalte descascar bem no dia em que fizemos as unhas. O que aconteceu para que essas miudezas se tornassem parte relevante do nosso tão atarefado cotidiano? Fico me perguntando se essa super-atarefação não é uma fuga, se nos ocupamos demasiadamente dessas e outras questões no fundo irrelevantes para não nos defrontarmos com aquilo que realmente importa - e que não queremos confrontar.

24.9.12

Cinquenta Tons de Espanto


A menos que você tenha chegado ontem de um planeta distante, há de saber que o mais recente megafenômeno do mercado editorial é a trilogia Cinquenta Tons de Cinza, da inglesa E.L. James, um romance erótico protagonizado por um homem dominador e uma mulher submissa, vendido como "pornô para mães" e autoproclamado salvador de casamentos.

Antes de prosseguir, o disclaimer. Este assunto me assombra e provoca imensa dor-de-cotovelo, porque este projeto passou por mim, tive oportunidade de participar do leilão e declinei (porque achei uma porcaria). Ou seja, faltou-me enxergar o fenômeno, quando meu trabalho é justamente identificar e adquirir best-sellers. Haja assombração, com sei-lá-quantos milhões de livros vendidos mundo afora.

Eu fico verdadeira assombrada com a proporção que estes livros tomaram. Primeiro, por ser literariamente tão ruim. A escrita é um horror; os personagens, um pesadelo; o enredo, uma abominação. Não por acaso, a história começou como fan-fic do Crepúsculo. (Fan-fic é a ficção feitas pelos fãs, quando os próprios leitores começam a escrever continuações para as séries de que gostam.) Na sua origem, a trilogia foi autopublicada, sem trabalho de editor, o que certamente quer dizer alguma coisa a respeito do papel dos editores neste mundo. Então, ok, a questão não é o texto nem a qualidade literária.

E segundo, o que me causa mais espanto, por as pessoas ficarem entusiasmadas sexualmente com o que o livro traz. Por acharem o protagonista, um megaempresário milionário de 27 anos, tão incrivelmente sedutor. Por se identificarem, em proporções tão avassaladoras, com esse fetiche de algemas e chicotes - o nome correto do que existe no livro é BDSM, que qualquer um pode recorrer à Wikipedia para entender do que trata. Por acharem a protagonista feminina alguém digno de empatia ou quiçá identificação.

Já li muito a respeito e conversei com várias pessoas que leram os 3 livros e gostaram, mas nenhuma conseguiu me explicar convincentemente por que gostou ou ao menos como conseguiu vencer as mais de mil páginas.

Eu continuo assombrada.



12.9.12

Abismo de gerações

Não sei bem como isso foi acontecer. Mas o caso é que, no trabalho, me tornei, sem perceber, a pessoa mais velha do departamento. Bom, ok, nós somos apenas 4 pessoas, mas enfim. Como dizia aquele desenho, em todos esses anos nessa indústria vital, essa é a primeira vez que isso me acontece.

Essa questão da idade naturalmente não nos afeta no dia-a-dia, ela se faz presente é nos pequenos detalhes. Outro dia fiz referência a uma (para mim) clássica propaganda da American Express em que um feliz proprietário do cartão, frente a uma circunstância por certo alvissareira, dizia "Paris hoje? ... Ok!", dando a entender que com American Express essas coisas são possíveis e não precisa hesitar mais de dois segundos. Ninguém conhecia.

Ontem, 11 de setembro, de novo aconteceu. De alguma forma surgiu o papo o-que-você-estava-fazendo-quando-soube-dos-atentados. A minha resposta foi: estava dançando num clube de salsa em Havana, Cuba. As respostas dos meus colegas: "Meu pai foi me buscar no colégio e me contou"; e a pior: "Estava assistindo TV Globinho quando entrou um Plantão da Globo".

Ai ai.

20.8.12

O samba não pode parar

Foi o fim de semana mais animado, em termos de eventos, dos últimos anos.

Numa performance pra Milton Ribeiro nenhum botar defeito, fomos a quatro concertos em três dias, no Theatro Municipal.

Na quinta, comemoração de aniversário da rádio JBFM. Teve a Orquestra Sinfônica Brasileira acompanhando Zélia Duncan, Djavan e Caetano Veloso, três músicos que admiro bastante. Mas apesar do elenco estelar, não achei o concerto brilhante. Não rolou muito entrosamento e o único que parecia estar um pouco mais à vontade, Caetano (que completou 70 anos este mês), foi surpreendido por um Parabéns pra Você constrangedor da orquestra, logo seguido por um coro de toda a platéia, quase morri de vergonha alheia.

Na sexta juntamo-nos à horda de violonistas que acorreu ao Municipal para ver o Manuel Barrueco tocar o Concerto de Aranjuez com a mesma OSB. Para quem não tem o prazer de conhecer, este é "o" concerto clássico e consagrado para violão e orquestra. Foi um bom programa, mas melhor ainda foi sair para jantar depois com G. e S., tomar uns vinhos e falar sobre assuntos de variadas gamas, desde as fofices das crianças até as malices da greve das universidades federais. Enfim, o bom e velho exercício da amizade.

Aqui temos John Williams tocando Aranjuez

No sábado teve dose dupla. Às 16h encontramos todos os mesmos violonistas da véspera para ver o Duo Assad tocando uma peça (Phases) do Sergio Assad com a Orquestra Petrobras Sinfônica. O regente convidado era um polonês, que abriu a noite com uma peça de seu conterrâneo Lutoslawski e encerrou com Quadros de uma exposição de Mussorgski. Às 20h30 fomos conhecer a Filarmônica de Minas Gerais, orquestra jovem e promissora, que tocou danças do Ginastera, o Concerto para mão esquerda de Ravel (e os dois concertos para piano e orquestra de Ravel estão entre as minhas peças favoritas de todo o repertório clássico) com um solista americano que eu não conhecia, Leon Fleisher, e depois do intervalo a Sinfonia Fantástica de Berlioz, que achei chata e infindável (55 minutos!).

Eis aqui uma outra interpretação do concerto para mão esquerda de Ravel, composto, se não me engano, para o pianista Paul Wittgenstein (irmão do filósofo Ludwig), que perdeu o braço direito lutando na Primeira Guerra Mundial

Mas tudo isso é para contar-lhes que no sábado, entre o programa das 16h e o das 20h30, marido levou-me para conhecer o Samba do Ouvidor, do qual eu até então só ouvira falar. É uma tremenda roda de samba que acontece em alguns sábados (a periodicidade é incerta, ao que parece) na rua do Ouvidor, perto da Praça Quinze. Fui acometida de uma tremenda nostalgia, uma enorme saudade do tempo em que frequentávamos tantas rodas de samba por aí, sem hora para voltar, e sem ligar para o fato de ficar horas em pé tomando cerveja sem um banheiro decente por perto, achando tudo ótimo. Adorei ali aquele samba, em que vi tantas caras conhecidas -- literal e figurativamente, desde pessoas que realmente conheço até tanta gente que não sei quem é, mas cujos rostos anônimos remetem a tantos outros frequentadores de rodas de samba desde os tempos imemoriais, gente que gosta mesmo dessa música, conhece e canta junto, mesmo que não seja carnaval, nem verão, nem esteja sol nem calor.

No meio de tanta sinfonia, foi aquele samba que me deu mais alegria.


18.8.12

St. Patrick's


Não pude evitar a tristeza com a notícia do fechamento do Colégio St Patrick's do Leblon, onde estudei dos 6 aos 13 anos. Tenho ótimas lembranças de lá: aprender frações com barras de chocolate, campeonato de tabuada, jogo de queimado no recreio, aulas de flauta doce e de teatro. Foi lá minha primeira e única experiência de sair na porrada (rolando pelos corredores), com uma colega de sala, por causa de um jogo numa das olimpíadas do colégio. Lembro muito da professora de inglês, inesquecível Teacher Teresinha, com quem devo ter convivido por sete anos ininterruptos, pois que ela dava aula para todas as séries. Não me lembro de gostar particularmente dela, mas hoje sou-lhe imensamente grata, porque no St Patrick's, por ser um colégio irlandês (a dona, Miss Maureen, era irlandesa legítima, falava com aquele sotaque de quem chegou ontem ao Brasil), tinha um ensino de inglês reforçadíssimo: cinco aulas por semana, desde a primeira série. Com isso nunca precisei frequentar cursos de inglês, e o que aprendi lá é a base do inglês que falo. (Até hoje, sempre que algum anglófono me pergunta onde aprendi a falar inglês tão bem, encho a boca para dizer: St Patrick's School.) E claro, a professora de música, Maria José, já então uma senhorinha, que na época eu achava que tinha cem anos, e que nos fazia cantar maracatus, cantos folclóricos, e Villa-Lobos. Um professor de Geografia na quinta série, que me apresentou ao conceito de divisão entre países capitalistas e socialistas (era 1987 e isso existia). Acho que esse professor se chamava Pedro Paulo, e um dia ele levou uma vitrola para a sala de aula e nos pôs a ouvir "Índios" do Legião Urbana, e colocou um cocar na cabeça (!). E foi ainda esse sujeito que me ensinou o que eram "corporações multinacionais" quando passou um trabalho em que precisávamos colar numa cartolina embalagens de produtos de multinacionais, como Nestlé e Coca-cola. Fiquei tão impressionada.

Foi lá também que, em 1988, todos os alunos foram convocados para a sala da televisão para assistir ao Aurélio Miguel recebendo a medalha de ouro na Olimpíada de Seul.

E naturalmente, foi nesse colégio que fiz meus primeiros amigos (e primeiros desafetos), que percebi que as pessoas se dividem em grupinhos, que valoriza-se quem é bonito, que tem gente mais rica que outros, que aprendi sobre lealdade e traição.

Desde que mudei de escola, nunca mais voltei a entrar naquela casa verde do Leblon. Mesmo assim, lembro do Colégio St Patrick's pelo menos uma vez por ano, no dia 17 de março. É o dia de São Patrício, o padroeiro da Irlanda e da escola. E nesse dia, eu sempre procuro vestir uma peça de roupa verde, como manda a tradição.

Hoorray, Hoorray, Hoorray, It's Saint Patrick's Day!

1.8.12

Por que os e-books no Brasil não vão decolar enquanto a Amazon não começar a operar

A questão do espaço (ou da falta dele) é central na discussão dos e-books
E-books para mim são um tema cotidiano. Lido diariamente com a compra de direitos de publicação de livros no Brasil, e já faz algum tempo que essa negociação necessariamente envolve os "e-rights", que são direitos para formato eletrônico. Na editora onde trabalho já vendemos desde 2010 edições eletrônicas de diversos títulos do catálogo, e como acompanho sempre as vendas, sei que os números são pífios, realmente desprezíveis.
Nos Estados Unidos os e-books já representam uma parcela muito expressiva do faturamento das editoras, e se não me engano as vendas dos eletrônicos já superam as vendas das edições em capa dura (porque lá existe um diferença clara entre a edição capa dura, a brochura e o livro de bolso). E nós aqui estamos sempre nos perguntando quando é que esse negócio vai deslanchar no Brasil. Porque, claro, o livro eletrônico representa uma mudança muito expressiva na indústria do livro. Não só você acaba com o enorme problema da logística e o monumental custo do frete, como também você deixa de ser obrigado a apostar numa tiragem específica. Isso é muito relevante, porque o preço de um livro impresso está diretamente ligado à sua impressão e tiragem. Quanto maior a tiragem, menor o custo unitário, menor portanto o preço de capa. Mas... maior o custo de estocagem caso o produto não seja um sucesso.

A visão do depósito de uma grande editora é sempre impressionante.

Então tiragem está diretamente vinculada a preço do livro, e tiragem simplesmente não existe no livro eletrônico. É uma imensa quebra de paradigma, pois ainda hoje toda a indústria é voltada para essas grandes apostas, os blockbusters que saem com uma tiragem inicial enorme, para assim inundar as livrarias com pilhas do livro. Outra coisa que muda com o livro eletrônico é o triste fenômeno do "livro esgotado". Mesmo que a demanda por certo livro tenha deixado de ser expressiva o bastante para justificar uma reimpressão, o livro eletrônico pode sempre ser adquirido, pois seu custo de armazenagem num servidor é desprezível. É aquele conceito da cauda longa, de vender poucas unidades de uma variedade muito grande de produtos.
Por esses motivos e outros eu sou, desde a primeira hora, uma grande entusiasta do livro eletrônico -- obviamente como mais uma opção de formato, e nunca à custa do fim do livro impresso, que esse eu não acredito que vá ter fim nunca --, e acompanho o debate sobre preços, modelos de pagamento de royalties etc. com muito interesse.

Este é o modelo que eu tenho do Kindle - um dos mais antigos.

Sou maior entusiasta ainda do Kindle, o leitor de e-books da Amazon. O Kindle é o melhor leitor de e-books que eu já vi. Ele é confortável de segurar, de ler, fácil de utilizar, mais fácil ainda de comprar qualquer coisa por ele, a interface é amigável etc. No entanto, o Kindle só lê o formato azw, da Amazon. Você não pode comprar um e-book em outro lugar e ler no seu Kindle. (Pode, no entanto, enviar para o Kindle arquivos pessoais, como PDFs e Words, que ele converte e transmite instantaneamente. Eu uso demais essa função (Kindle personal documents) para ler os manuscritos que recebo, e funciona maravilhosamente bem.)

Tablets também popularizam os e-books

Tenho também um tablet, um Galaxy Tab rodando sistema Android, e leio muitos documentos nele também, mas ainda acho o Kindle infinitamente melhor como experiência de leitura (pelo tamanho e peso, pela duração da bateria (meses!) pelo fato de não gerar luz própria como o tablet, e porque ele não tem nenhuma outra função que me distraia da leitura).

Eu amo o Kindle, mas tenho muitas restrições ao modelo de negócio da Amazon, que abaixou tremendamente o preço dos livros (físicos e eletrônicos), vendendo abaixo do custo e com isso dizimando a concorrência e alterando a percepção de valor que o livro tem. No frigir dos ovos, sou uma feliz cliente da Amazon, mas entendo que, para o negócio como um todo, é uma empresa predatória e o resultado que se está vendo nos EUA (inclusive um longo processo judicial que está rolando lá contra as grandes editoras que fecharam contratos limitando o desconto que a Amazon poderia dar para e-books) não é nada bom. Essa é uma longa discussão e fica para outro chope.
Mas o que não se pode negar é que a experiência de consumidor na Amazon é sensacional. Não só eles vendem tudo sem criar qualquer obstáculo -- basta ter qualquer coisa minimamente semelhante a um cartão de crédito, emitido em qualquer país -- como têm um sistema de recomendações muito eficiente, e ainda por cima o atendimento ao consumidor é, literalmente, uma coisa do outro mundo.


Jeff Bezos, dono da Amazon, virou uma espécie de vilão do mercado editorial americano
Dito isso, o que eu realmente queria contar é que ontem, pela primeira vez, eu resolvi comprar um livro eletrônico brasileiro. Curiosa para ler os assim-chamados "melhores jovens escritores brasileiros", fui ao site da Saraiva, a maior rede de livrarias do Brasil, e comprei a edição e-book da Granta 9, tão comentada por aí. Sabia que não poderia ler no Kindle, mas podia ler no tablet. A compra em si não foi complicada. Já sou cliente da Saraiva.com, a operação foi simples. Depois de comprar, descobri que teria de baixar, no computador, o programa Saraiva Digital Reader.

Ô programinha ruim!
Ok, cliquei no botão para iniciar o download, e descobri que trata-se de um programa de 62Mb! Baixei, e descobri que também é preciso se cadastrar num troço chamado Adobe Digital Edition (ou outro nome semelhante, já não lembro mais). Assim o fiz, me loguei e consegui fazer com que o arquivo da Granta aparecesse na minha Biblioteca dentro do Saraiva Reader. Porém (ah, porém) quando abri o e-book, era chocante: uma massa de texto que ia de um extremo a outro da tela, em Times New Roman corpo 12 e entrelinha simples. Absolutamente ilegível, sem formatação, um mico total. Mas tudo bem, pensei, no tablet não vai ficar assim tão ruim. Então tive de baixar o aplicativo do Saraiva Digital Reader também no tablet (15Mb), e foi aí que a coisa realmente ficou complicada. Porque o aplicativo baixou e abriu numa boa, mas para ler a bendita Granta eu precisava entrar com meu login e senha, uma operação simples, mas que não funcionou de jeito maneira. Eu colocava o e-mail e a senha, clicava em Entrar, ele dizia "Verificando...", e voltava para a mesma tela pedindo e-mail e senha. Não dizia que estava incorreto ou inválido, simplesmente voltava, não entrava.
Oh céus, pensei, vai começar. Entrei no SAC da Saraiva pelo chat e fui atendida em uns poucos minutos. Expliquei o problema à atendente, que me pediu o meu CPF. Depois que informei, ela disse: tem 2 endereços de e-mail cadastrados à sua conta: xxx@ig.com.br e xxx@yahoo.com. Achei aquilo surreal, pois esse e-mail do ig está inativo há pelo menos dez anos, e de lá para cá fiz dezenas de compras pelo site da Saraiva com o outro e-mail. Expliquei isso para ela, que respondeu: estou solicitando a exclusão deste e-mail velho. Posso ajudar em algo mais? - Como assim?, teclei. Claro que pode, pode ajudar a resolver o problema que eu lhe informei, ora, e que nada tem a ver com endereços de e-mail. Ao que ela retornou com a incrível solução de solicitar outra senha para a minha conta! E assim fez, a despeito dos meus protestos, de tal forma que eu não conseguia mais entrar na minha conta nem pelo tablet e nem pelo site, porque a senha de praxe não valia mais, e a nova não chegava no meu e-mail. Passaram-se horas, e a senha não chegou. Liguei para o SAC da Saraiva (o número de São Paulo, com DDD, porque o 0800 para outras cidades não funciona) e expliquei tudo ao atendente, que então me disse que solicitaria novamente o envio de uma senha.
Essa nova senha chegou às 19:15 (a compra do e-book foi às 10:46), de modo que só hoje pude experimentá-la no tablet, o que obviamente não resolveu nada, o problema continuou igualzinho.
Peguei um café, me muni de toda a paciência disponível no meu ser, e liguei de novo para o SAC (tentei de novo o 0800, mas é porque eu sou teimosa, só o número comum de São Paulo é que funciona mesmo). Expliquei tudo de novo ao atendente, que então sugeriu que eu desinstalasse o aplicativo do tablet e instalasse novamente. Não acreditei que isso fosse dar certo, porque afinal o aplicativo funcionava (eu conseguia ler as amostras grátis que vêm instaladas, por exemplo), mas não quis ser antipática e fiz o que ele sugeriu. Que, claro, não funcionou. Então a única opção que o atendente me deu foi mandar um e-mail para o digital@livrariasaraiva.com.br, porque o atendimento para e-books é feito exclusivamente por e-mail. Mandei um e-mail hoje às 10:30, que me foi respondido às 18:13, pedindo screenshots da tela com o problema. Atendi prontamente, e de fato logo recebi uma resposta, sugerindo que eu clicasse num ícone tal e mandasse o aplicativo "atualizar". E voilà, não é que funcionou?! Então, cerca de 35 horas depois de comprar um e-book, pude abri-lo no tablet.

Meu primeiro (e último?) e-book nacional foi para conhecer mais da nova literatura nacional 
Bem.
A Granta é uma coletânea de textos de diferentes autores. E a primeira coisa que eu reparei no meu tão batalhado e-book é que não consegui encontrar um sumário. (Minto: a primeira coisa foi o alívio de ver que era o livro formatado, como o impresso, e não aquele Times entrelinha simples que vi no computador.) Tampouco achei onde clicar para ir para o final do livro, ver se o sumário estaria no fim. Não vi uma barra de progresso, mostrando em que ponto do livro você está. Depois, para meu grande espanto, vi que fazendo aquele movimento de afastar os dedos em cima da tela, o texto não muda de tamanho, não aumenta nem diminui. E o pior é que não consegui achar uma barra de configurações onde regular isso. Fiquei algum tempo incrédula, até que por fim esbarrei sem querer no topo da tela, e finalmente ali apareceu a barra onde tem tudo isso: sumário, progresso do livro, tamanho da fonte, marcadores, anotações, está tudo lá, só fica muuuuito escondido. Mas ele dá pau quando mando aumentar o tamanho da letra e mudo de página. Travou três vezes por esse motivo. E a conversão para e-book não é bem feita: o número das páginas cai em cima do texto.
Tendo passado por esse périplo, mesmo com final modestamente feliz, não sei se voltarei a comprar outro e-book tão cedo na Saraiva. Dizem que o aplicativo da Cultura é ainda muito pior, e são essas as duas principais redes de venda de e-book do país. A diferença em relação ao que a Amazon oferece por um preço menor é tão gritante, que não me admira absolutamente que os números de venda de e-books ainda patinem no Brasil. A baixa qualidade dos produtos e soluções (o Saraiva Digital Reader não é um bom leitor de e-books), a falta de preparo do atendimento ao consumidor, e os preços surrealmente altos dos e-books (eu tinha curiosidade de comprar o e-book dessa biografia do Getúlio Vargas lançada pela Cia das Letras, mas ele custa incríveis R$36,50 na Saraiva, que está vendendo a edição impressa, em promoção, por menos: R$35,80) selam, na minha opinião, o destino desse formato ao fracasso.
Dá para entender por que a Amazon quer tanto vir para o Brasil. Ela tem, aqui, todo um universo a explorar.
Repara nos preços

E para os heróis que chegaram ao fim deste longuíssimo texto: vocês já compraram algum e-book, na Amazon ou no Brasil? Como foi a experiência? Se não comprou, o que pensa do assunto?Comenta aí, vai.