29.4.07

No Palácio

O Palácio Capanema é uma das jóias da arquitetura modernista brasileira. O projeto é do Lúcio Costa.

O novo presidente da Funarte diz que o Palácio Gustavo Capanema, no centro do Rio, será transformado num grande centro cultural que vai abrigar eventos de todas as artes. Se acontecer mesmo será ótimo. Por acaso estive no Palácio esta semana. Adoro aquele prédio, e me sinto bem só por estar ali. Fui lá procurando a Representação Regional do Ministério da Cultura, uma iniciativa recente que achei bastante inteligente, em sua proposta de descentralizar todas as operações, informações etc. que antes eram só em Brasília. Como eu tinha que mandar alguns documentos para o Minc, resolvi ir até o palácio e entregar lá, em vez que mandar um Sedex.
Era o meio de uma tarde linda, céu azul até não mais poder, contrastando com as curvas do Palácio, as plantas e os azulejos. Na portaria, um guarda distribuía crachás aos visitantes. Disse que queria ir à Representação Regional do Ministério da Cultura. O que você vai fazer lá?, perguntou ele com a maior naturalidade. Surpresa com aquele tipo de pergunta ainda quase na porta da rua, balbuciei qualquer coisa como "entregar uns documentos". Mas é projeto?, insistiu ele. Comecei a me irritar. Não, não é projeto. Ele ficou com cara de quem espera mais informação. Eu disse que tinha ligado antes, ele se conformou e me deu um crachá escrito "2º andar".
Saltei do elevador no segundo andar, dei de cara com um balcão lindo de madeira, enorme e em forma de onda (como o calçadão de Copacabana, mais ou menos). Ele ficava no canto de uma sala incrivelmente grande, ampla, linda... e vazia. Até que num cantinho vi uma moça, com roupa de guarda de segurança terceirizada, sentada atrás de uma mesa minúscula, como uma carteira de colégio, que ficava ainda mais diminuta em contraste com a amplidão modernista daquele lugar. Falei com ela, que também me perguntou "É projeto?", e diante da negativa, me encaminhou para uma sala pequena, cheia de mesas e pessoas. Bem ao lado, uma porta aberta dava para outra sala gigantesca e descomunalmente vazia, que dava ainda para uma varanda espetacular. Era muito estranho aquilo, tantos lugares tão grandes vazios, e um monte de gente esprimida numa sala mínima.


Falei com duas moças que dividiam uma mesa e um computador. Naturalmente, me perguntaram "Mas é projeto?" e ficaram em dúvida quando eu expliquei que não, não era projeto, não era Lei Rouanet. Quase como se o Minc não tivesse mais nenhuma atividade desvinculada da Lei Rouanet -- o que, convenhamos, não está muito longe da verdade.
Quando expliquei o que era, elas ficaram assim com uma cara tão abismada, como se eu tivesse dito "Bom dia, eu vim aqui comprar um quilo de alcatra". Mas pegaram o telefone e ligaram para algumas pessoas, para chegar à conclusão que meus documentos deveriam ser mandados para Brasília. Eu disse que sabia disso, mas será possível que eu não poderia entregar ali e eles me dariam um protocolo e encaminhariam ao lugar certo, em Brasília ou onde quer que fosse? Ah, peraí, vamos ver. Tem que perguntar para a fulana. Nesse momento entra uma mulher enorme, tanto vertical quanto horizontalmente, senta-se atrás de uma mesa, ouve o meu caso (sim, porque já virou um "caso"), pergunta "Mas não é projeto?" e diz, peremptória: Você tem que ir ao 12º andar e procurar a senhora Jupiara.
Eu quase ri com aquela frase, que parecia alguém querendo imitar depreciativamente o serviço público. Jupiara, no 12º andar? Só faltou a parte do "em três vias".
Voltei para o elevador, mas antes parei no balcão-calçadão-de-Copacabana e preenchi o envelope pardo com o endereço que eu tinha de Brasília, além de conferir mais uma vez o conteúdo, na minha organização paranóica-neurótica-obsessiva (faltam-me subsídios psicanalíticos para me decidir pela melhor definição para o meu caso). Nisso tocou meu celular e eu fiquei um tempo falando.
Finalmente peguei o elevador para o 12º andar. Lá, a primeira coisa que se vê é um balcão com vários guichês. Apenas um guichê tinha um ser humano atrás, ser humano este que conversava com outro, do lado oposto, e ao lado, mais uma guarda de segurança terceirizada (sabe como é, não contratam mais ninguém, é tudo terceirizado).
-- Bom dia, por favor a senhora Jupiara?
O ser humano do lado de lá do balcão franziu a testa:
-- Jupiara??
Ah meu deus, pensei. Vai ver que inventei o nome da mulher, no meio tempo em que fiquei endereçando o envelope e falando no celular, já passaram muitos minutos entre o momento em que me falaram o nome da criatura e agora.
-- Er, agora não tenho certeza, acho que é Jupiara. Mas talvez Jupira? Ou Iracema? (vejam por que distâncias viaja a mente da pessoa)
Fui salva pelo outro ser humano, do lado de cá do balcão.
--A Juju, da Administração!
-- Ah, sim, claro, a Juju!, lembrou o outro. É projeto?
-- *suspiro*
A segurança terceirizada pediu a minha identidade (!), anotou valiosas informações na sua prancheta, e me encaminhou até uma outra salinha cheia de mesas e pessoas. Como sempre, no meio de uma amplidão desocupada. Logo encontrei a Jupiara, atrás de sua mesa. Naturalmente a Juju perguntou "É projeto?", mas por sorte não achou o fim da picada o fato de não ser. Pegou o envelope, conferiu o endereço, sorriu e me deu um protocolo com o número do malote e do envelope.
-- Amanhã de manhã já vai estar lá em Brasília, ela disse confiante.
Afinal, o serviço público se orgulha da sua presteza e competência.


4 comentários:

osvjor disse...

ótima a descrição de sua aventura nos labirintos do Edifício Capanema. Me lembrou sei lá por que o filme "Brazil". Estive naquele prédio há séculos e o que mais me chamou a atenção foi o contraste entre a beleza exterior e o interior, detonado.

F. disse...

Dois comentários e uma pergunta...
Sobre Lúcio Costa: Tive o prazer de entrevistá-lo (se é que se pode dizer assim) há uns 15 anos. Eu um 'foca', ele um senhor avançado nos 80. Minha pauta era sobre cidades planejadas e ele seria a fonte para falar de Brasília. Na primeira pergunta (repetida três vezes, porque ele já estava meio surdo), saiu-se com esta: "Meu filho, esqueça essa reportagem. Planejar cidades é perda de tempo. Veja o trabalho que fizemos em Brasília. Tanto esmero, tanto suor e virou aquilo. O ser humano é inviável". Fim da entrevista.
Sobre o "ser humano atrás do balcão": já reparou que, não importa quantos guichês existam, tem sempre apenas um funcionário trabalhando como caixa atrás do balcão no Banco do Brasil? E já percebeu que, entre um cliente e outro, ele sempre tem que fazer alguma coisa misteriosa ali atrás que dura uns 15 minutos?
E finalmente: Era projeto?

Anunciação disse...

Comentando o comentário,também gostaria de saber o que tem lá atrás e um dia acho que descobri;aqui onde moro tem uma copa lá atrás na agência que eu fui;será pra tomar cafezinho,beber água,ou o quê?Quanto a você,receba meu sinceros parabéns pela paciência,diligência e todas as qualidades que eu não teria uma hora dessas.E ainda escrever tão lindamente sobre.

Remo Mannarino disse...

É preciso muita cancha e sensibilidade para fazer uma crônica assim magistral a partir de uma corriqueira ida ao Palácio Gustavo Capanema, com a ousadia de não estar se candidatando a nenhum projeto. Parabéns pelo estilo, texto limpo e espírito sobretudo carioca.Parabéns também pelas 10 mil visitas, das muitas tantas que você ainda vai receber.

Remo Mannarino